Developer: Plane Toast
Plataforma: Nintendo Switch, PlayStation 5 e PC
Data de Lançamento: 12 de Setembro de 2024
Há jogos que nos arrebatam pela simplicidade e pela competência, mas apenas alguns conseguem aliar isso a uma beleza peculiar e singular, dando “sentido à viagem”, já dizia a famosa canção dos Ornatos Violeta chamada “Capitão Romance”. Caravan SandWitch é um desses jogos. Em certa forma, pela arte e pelo universo que apresenta fez-me lembrar Planet of Lana, por outro, os desenhos de Hérge e do seu famoso Tintim. Talvez o facto do estúdio indie Plane Toast ser francês, essa influência belga tenha sido um dos elementos que introduziu no jogo, o outro, eu apostava que seria O Principezinho, do compatriota Antoine de Saint-Exupéry.
O jogo vai-nos colocar na pele de Sauge, uma jovem rapariga que habita numa estação espacial, mas que regressa à sua terra natal, Cigalo, para responder ao pedido de ajuda da sua irmã mais velha, Garance, que supostamente estaria morta há seis anos. É com a ínfima possibilidade dela ainda estar viva que Sauge vai procurar incessantemente todas as pistas que a possam levar de encontro à sua irmã e a perceber o que se passou com ela.
Apesar dessa urgência, o jogo é extremamente calmo, contemplativo e exploratório. Com ênfase na inclusão e nos temas ambientais, a vida em Caravan Sandwitch é simples: sem combate, sem morte, sem cronómetro, só o jogador, a vossa carrinha e o mundo. Para conseguir isso, a Plane Toast deu-nos um mapa bastante vasto e rico, com biomas diferenciados onde tudo é alvo de ser explorado e de compreender os seus mistérios. Devo confessar que o level design do jogo impressionou-me porque o mapa não é gigante, mas através da inclusão de zonas tão diferenciadas, como as montanhas, praias, pequenos aldeamentos, cavernas, zonas industriais e deserto, acaba por dar-nos a sensação de um mapa muito maior. Às vezes é mais como se faz do que a quantidade que se entrega que faz a diferença.
E devo dizer que a simplicidade do jogo é um dos pontos fortes. No início da nossa jornada, vamos ajudar uma velhinha que nos empresta a sua carrinha para viajarmos e realizarmos algumas tarefas para ajudar a comunidade. Aliás, a Plane Toast deu enorme importância à criação de um jogo em que todos possam se sentir incluídos, representando a sua visão de um mundo onde as comunidades se ajudam mutuamente para superar as consequências ambientais do nosso mundo. Caravan SandWitch é escrita com um roteiro inclusivo, que representa uma comunidade real com o seu povo e representação.
Apesar da nossa missão ser clara, Sauge fará de tudo para ajudar todos aqueles que surjam pelo caminho. Não só pelos recursos que vamos amealhando e que precisamos para fazermos upgrades na nossa carrinha, mas também para desvendar um pouco mais da história deste local, deste planeta desértico devido às atividades humanas e à superexploração. Vamos descobrir em Cigalo o impacto do ser humano e da sua população durante a viagem. Conhecer os Reinetos, uma antiga espécie aborígene, os Robots deixados para trás após a exploração do planeta, os humanos que ficaram depois que todos partiram para outro planeta e a misteriosa SandWitch.
A nossa Sauge é capaz de saltar, escalar, correr, activar mecanismos, recolher objectos e conversar com as diversas personagens, mas a nossa carrinha será quase uma segunda personagem jogável. Para além de nos movermos mais rapidamente nela, ao longo da nossa jornada vamos a aprimorar com alguma tecnologia fornecida por Nèfle, uma cientista local e ex-namorada da irmã mais velha de Sauge, vamos instalar uma antena para descobrir recursos e mecanismos, assim como, mais tarde, uma garra, para puxar objectos ou desbloquear portas.
O jogo tem algumas semelhanças com a construção de um metroidvania, isto é, só vamos conseguir aceder a alguns los locais depois de fazermos os upgrades à nossa carrinha, assim como construir uma roldana para Sauge. E isso faz com que exploremos mais e mais o mapa à procura de recursos e completando missões secundárias a ajudar a população, e depois conseguir construir esses mecanismos. Alguns podem ficar frustrados pela consecutiva viagem de ponto A a ponto B, mas, na minha opinião, a viagem é exatamente o ponto central do jogo. Várias missões opcionais, após concluídas, pedem que façam o caminho de volta manualmente com a pessoa acompanhante, dando tanto uma oportunidade de conversar e aprender mais detalhes da história quanto de nos familiarizarmos com as belíssimas paisagens de Cigalo.
Espalhadas pelo planeta encontram-se diversas estruturas abandonadas, construídas pelo Consórcio, uma entidade semelhante a uma corporação ou a um país que utilizou Cigalo como base de operações durante muitos anos. Cada uma é como uma pequena caixa de quebra-cabeças, com uma mistura de resolução de problemas e testes simples de inteligência espacial, e a linguagem visual coesa do jogo torna o processo de navegação por estas estruturas numa experiência intuitiva e relaxante.
Além dos encantos de explorar um pequeno mundo aberto, outro grande trunfo de Caravan SandWitch é a sua história e os seus personagens. Cigalo pode ter sido abandonado pelo Consórcio, mas o povo que ali nasceu e cresceu nunca desistiu do pequeno planeta. Desde a população nómada, que vive da terra e da boa vontade dos locais, até às Bruxas da Areia, guardiãs de um segredo importante, todos têm uma ligação profunda com o ambiente.
Até mesmo Sauge, que deixou Cigalo seis anos antes para estudar nas Cidades Espaciais do Consórcio, acaba por viver a sua própria aventura de reconexão enquanto procura por Garance. Espalhados pelo mundo estão vários locais onde a protagonista criou memórias de infância com a irmã, Nèfle, e os pais, Cèpe e Basile; ela tem sempre algo a dizer sobre os lugares que costumava explorar ou sobre as zonas que lhe eram proibidas em criança.
O jogo tem ainda um carácter político, apesar de ser facilmente incorporado na prateleira dos cozy games, Caravan SandWitch, fala-nos sobre o colonialismo. Talvez pelo estúdio estar sedeado em Provença, pelos developers serem franceses e ainda hoje se debaterem com essa questão interna e externamente, esse assunto está enraizado no jogo. Não só pelo ideia de comunidade, composta por pessoas de todas as origens e feitios, mas também pela ideia de um local subjugado à ganância humana, da exploração de recursos até à exaustão da natureza, deixando uma paisagem desértica e os locais à sua sorte.
O mesmo aconteceu em Cigalo: anteriormente um vasto pântano, onde o povo indígena Reineto, composto por sapos sencientes, vivia livremente, o planeta transformou-se agora quase inteiramente num deserto, com vegetação escassa. Resta apenas uma pequena área de terra indígena, a Floresta Coaxante, onde a diminuta população resiste.
O tema é abordado com a seriedade e a subtileza que merece, sob diversas perspetivas — incluindo a de pessoas que sentem falta dos colonizadores. Um jovem casal, por exemplo, pergunta a Sauge como foi a vida nas Cidades Espaciais e se valeria a pena considerar levar Abricot, o seu filho, para lá quando ele crescesse; acreditam que talvez existam mais oportunidades de uma vida melhor nesse lugar. Cabe ao jogador expressar a sua própria opinião.
Em Caravan SandWitch, por outro lado, o jogador é confrontado com os factos da vida em Cigalo e convidado a traçar paralelos com o nosso mundo real, refletindo por si sobre quem está certo ou errado. Trata-se de um exercício de crítica menos explícito — e talvez até mais adequado para promover o diálogo. É algo que deve ser recomendado, sobretudo, àqueles que discordam do que é apresentado ou que ainda não têm uma opinião formada.
A inclusão e a reflexão são dois dos pilares do jogo, por isso, não é de estranhar a inclusão da linguagem neutra no jogo. Devo confessar que ao iniciar a minha campanha, estranhei a forma como os diálogos eram apresentados. A princípio, pensei que houvesse erros na localização, mas depois percebi que o jogo foi traduzido utilizando linguagem neutra.
Confesso que não me recordo de outro jogo que tenha adotado essa linguagem ao ser localizado para o nosso idioma e também preciso admitir que, em diversas situações, tive de reler os diálogos mais do que uma vez para entender o que queriam dizer. É de saudar essa utilização e adoção, mas, por vezes os textos ficaram demasiado confusos para mim, acho que poderia ser uma opção de jogo e não o standard.
Caravan Sandwitch é uma experiência relaxante, reconfortante, sem pressas ou desafios ultra complicados. Tem um level design requintado, alegre, com puzzles ambientais muito bem conseguidos. Fundamenta-se na viagem, na jornada de Sauge, mas também do espírito de comunidade que devíamos ter e devíamos partilhar. Inspira-nos, mas também nos leva a ter espírito crítico e de refletirmos sobre o mundo no seu estado atual. E isso, é tudo o que podemos desejar num jogo bem concretizado.