Developer: Black Salt Games
Plataforma: PC, Nintendo Switch, PS5|4, Xbox One e Xbox Series X|S
Data de Lançamento: 30 de Março de 2023
Há sempre alguns jogos que no meio da multidão sobressaem por alguma razão. Dredge é um deles, talvez pela arte conceptual, que me fez lembrar um Project Winter devido aos seus desenhos retilíneos, mas com um traço muito próprio, ou pela premissa da “personagem” central ser uma pequena embarcação pesqueira. Sim, leram bem, uma embarcação pesqueira e, no fundo, o pescador que a comanda serão os protagonistas desta aventura que, no seu início, poderá dar a impressão que será bastante pacífica, mas que rapidamente descarrila para resvalar entre o horror e o terror.
A história é bastante simples, somos um pescador com a sua pequena embarcação que se esbarra contra umas rochas em alto mar e vamos parar a uma pequena vila costeira chamada Greater Marrow Somos salvos pelos locais, mas perdemos a nossa embarcação, o nosso ganha-pão. O governante dá-nos a oportunidade de nos reerguermos, bastando que, numa fase inicial, parte da receita que fizermos a pescar, seja retribuído para pagar a nova embarcação e ajudar o desenvolvimento da vila. Parece bastante simples e até um bom exemplo a seguir por tantos outros governantes e, por isso, rapidamente tentamos retribuir a ajuda dada.
A premissa está dada e vamos à pesca das mais variadas espécies que percorrem os mares, só que nem tudo o que parece é, e enquanto de dia os mares parecem tranquilos e pacíficos, de noite surgem embarcações fantasmagóricas, mutações nos peixes que apanhamos, e há monstros que surgem das profundezas. É aí que entra um sentimento de ansiedade e terror no nosso pescador que o fazem duvidar do que vê e até da sua própria lucidez.
No início somos apresentados pelo governante de Greater Marrow a outras personagens centrais deste hub. Temos assim acesso ao Shipwright, ao Dry Dock e ao Fishmonger. O primeiro é onde podemos fazer upgrades dos nossos utensílios de pesca e das peças da nossa embarcação. Desde as canas e redes específicas para cada um dos mares e oceanos, passando por motores mais potentes ou iluminação para o pequeno barco. A Dry Dock funciona como zona de upgrade para o tamanho disponível dentro da embarcação, para carregar mais peixe, por exemplo, mas também para aumentar as slots para a iluminação, motor e material de pesca. Para conseguirmos fazer esses upgrades vamos ter que recuperar materiais por esse mar fora, mais provavelmente junto a outras embarcações naufragadas. E não julguem que é fácil, porque para além desses recursos, ou pelo menos alguns deles serem bastante escassos e difíceis de encontrar, vão ter que gastar uma pipa de massa para os fazer. Por fim, o Fishmonger, que é basicamente o mercado de peixe, onde vendemos o que apanhámos.
Nas primeiras horas de jogo, vamos andar muito num traz e leva de peixe para Greater Marrow para tentar recuperar o investimento que fizeram em nós, como já tinha explicado, e a conhecer a outra vila na ilha exactamente oposta a esta. Little Marrow tem um trader, para podermos vender as joias e artefactos que vamos resgatando e um velho marinheiro apanhado do clima. E é a interagir com estas personagens que a trama começa a adensar-se rapidamente.
Começamos a perceber, nem que seja por nos perdermos no mapa, que de noite há coisas estranhas a acontecer. Sombras de outros navios que afinal são monstros marinhos, gaivotas negras com os olhos vermelhos que nos atacam, sussurros vindos sabe-se lá de onde, e peixe mutante que vamos pescando pela noite adentro. Há coisas no fundo do mar que são inexplicáveis e que coloca o nosso marinheiro pescador em ataques de pânico. Isto porque temos um medidor de ansiedade, uma mecânica extremamente bem conseguida, onde conforme vamos andando de um lado para o outro, a dormir pouco e a percorrer os mares à noite e a ver coisas inexplicáveis, esse medidor vai enchendo. E quando chega ao máximo, onde se vê no HUD um olho vermelho a olhar para todo o lado muito rápido, começamos a ver coisas inimagináveis, como um tubarão gigante ou um tentáculo de um kraken.
Conforme vamos percebendo melhor esta mecânica, vamos tentando dormir mais vezes, fazer viagens relativamente curtas para não entrarmos em paranóia e para o nosso barco não acabar despedaçado. Apesar de o podermos arranjar no shipwright, por exemplo, a verdade é que se gasta muito dinheiro nisso. Contudo, com o passar do tempo vamos descobrir uma pequena ilha habitada apenas por uma pessoa, numa velha mansão. É o Collector, um homem suspeito, com um livro com uma capa que faz lembrar o símbolo dos Illuminati e que tem um pedido especial para nos fazer: resgatar alguns objectos específicos e especiais para ele, que estão embutidos de uma força inexplicável. Se o fizermos, é nos prometido uma série de recompensas.
É a partir daqui que embarcamos numa aventura maior. Cada um dos objectos está em uma das quatros zonas do mapa: Devil’s Spine, Gale Cliffs, Stellar Basin e Twisted Strand. Estas zonas funcionam como níveis que podemos fazer pela ordem que nos apetecer assim como ir fazendo bocados de cada uma. Aqui existe uma total liberdade na execução das tarefas e na gestão do nosso próprio tempo. Este acaba por ser um elemento que me agradou particularmente, visto que não existe uma obrigação em seguir determinado rumo. Se forem como eu, que adora o grind, vão querer apetrechar a vossa embarcação com todas as melhorias possíveis e, com, isso vão “perder” imenso tempo fora das actividades principais.
Estas quatro zonas funcionam quase como biomas, em que cada uma apresenta diferenças estruturais no level design, no ambiente e até no clima, para além do objectivo em si.
Gale Cliffs é um pequeno labirinto montanhoso onde as baleias costumavam passar. Com isso a pequena vila de Ingfell enchia-se de turistas a visitar este pequeno lugarejo para ver as baleias de perto, mas, de repente, algo aconteceu e as baleias desapareceram, todos os navios que passam pelos estreitos montanhosos deixaram de regressar e as pessoas foram fugindo de Ingfell. É aqui que vamos encontrar a história de dois irmãos que se separaram e que vamos ter que voltar a reunir para conseguir recolher um dos objectos coleccionáveis. Os remoinhos e as zonas estreitas vão ser um desafio à concretização desse objectivo, assim como uma estranha “serpente” que vagueia no fundo do mar.
Stellar Basin é uma antiga zona turística com um resort numa das pontas. É um mini-arquipélago com um clima tropical e cheio de corais. Com uma formação circular e uma antiga fortaleza numa das pontas que serviu de protecção contra os piratas, esta zona esconde um perigo gigantesco no fundo do mar. Perigo esse que nos faz, obviamente lembrar Cthulhu e a imagética criada por H. P. Lovecraft em 1926. Uma zona que de noite ganha uma riqueza artística, com os corais e algumas espécies a reluzirem no mar desta região. Espécies tão especiais que, na antiga fortaleza, agora transformada num Centro de Pesquisa, vamos ajudar uma pesquisadora a apanhar espécimens para a sua pesquisa.
Distant Shores é uma zona vulcânica com um nevoeiro intenso e cerrado devido à sua situação climatérica inerente. Uma zona que guarda um grande pedaço de história por desvendar, com um mensageiro de uma profecia numa das zonas e com um pedido no mínimo estranho: o de recuperar chamas gélidas para acender em 3 estátuas. É aqui que teremos uma certa ligação com o passado histórico de todas as zonas e a ligação misteriosa com o presente. Aqui teremos piranhas a tentarem dar cabo da nossa embarcação a toda hora e só as conseguimos afugentar passando pelos pequenos vulcões submarinos.
E Twisted Strand que coloca-nos outro desafio pela frente numa zona pantanosa, quente e húmida, onde os ramos e as árvores parecem ter vontade própria e condicionam a nossa passagem por mais um labirinto. Neste caso vamos tentar salvar um militar que, juntamente com o seu esquadrão foi engolido pela selva pantanosa e não faz a mínima ideia do que aconteceu aos seus camaradas. É claro que, algo aconteceu com um monstro marinho à mistura.
Passemos então para a componente da jogabilidade. Como já perceberam, grande parte dela prende-se com o locomoção da nossa pequena embarcação de pesca. Basicamente será através dos dois analógicos, um para mover a câmara e a outra para a direção e a velocidade. Tanto a pesca como a recuperação de tesouros e materiais dos escombros são feitos através de mini-jogos simples, mas bastante diferenciados e mesmo satisfatórios, onde o timing e a coordenação são elementos chave. Depois temos ainda o LB que activa outros mecanismos, como por exemplo, o ligar e desligar a iluminação do barco, a buzina, ou mais à frente a rede de pesca ou outros elementos mais obscuros que vão apreendendo ao longo da jornada.
Em termos da própria embarcação em si, também vão ter que a gerir muito bem, visto que tem um espaço limitado. Há 4 tipos de espaços, o para todo o tipo de peixe, destroços e tesouros, o para o motor, outro para iluminação e ainda um para os equipamentos de pesca e de rede. É uma espécie de Tetris da mar porque basicamente os elementos podem ser rodados para encaixar nos espaços da melhor forma e, de forma a maximizar o vosso espaço. Claro que podem ir fazendo upgrades para ter mais espaço para cada funcionalidade, mas tenham também atenção que se sofrerem danos tanto o casco em si, como as peças dentro da nossa embarcação se podem partir, perder ou danificar.
Como é habitual num jogo de exploração, mesmo que marítimo, temos vários coleccionáveis para apanhar por esses mares fora. Há mensagens em pequenas garrafas, há missões secundárias para recebermos livros para lermos nos tempos livres que nos dão bónus permanentes, ou altares de peixes mutados para ganhar equipamento de pesca obscuro. Tudo isso e cerca de 125 espécies para apanhar com um glossário que nos vai dando algumas dicas de onde apanhar os mais raros e com que equipamento.
Já em termos gráficos, Dredge também surpreende, especialmente porque, como tudo o resto, foi feito por 4 pessoas na Nova Zelândia. Os gráficos cell shading dão o aspecto polido e bonito das paisagens, do barco e das personagens, dando a impressão de um mundo vasto, de contemplação e aparentemente tranquilo. O contraste com as formas aberrantes que vamos encontrar durante a noite, as cores que envolvem algumas das personagens, envoltas numa espécie de manto de escuridão, dão-nos a sensação de desconforto e terror, especialmente quando temos algum elemento brilhante no vazio. O ambiente é uma parte fulcral do jogo e vão perceber como funciona tão bem em termos gráficos, como em termos sonoros, com a trilha sonora a mudar drasticamente nos ciclos de dia/noite e em momentos mais particulares de contemplação ou de terror.
Dredge é uma obra de arte. Não me custa dar nota máxima a um jogo feito por 4 pessoas, como por milhares. Para mim, o que importa, é a ideia e como a concretizaram e a experiência que tive com o jogo. E em Dredge passei horas a fio agarrado ao comando sem querer parar de jogar e acordar no dia seguinte a querer voltar até acabar. E esse sentimento só quer dizer uma coisa: é 5 estrelas!