Developer: Rogue Factor
Plataforma: Xbox Series S|X, Xbox One, PS5, PS4 e PC
Data de Lançamento: 08 de setembro de 2025
Depois de já ter jogado a demo, com cerca de hora e meia de jogo, foi altura de mergulhar por completa na proposta audaciosa do estúdio Rogue Factor com o carimbo da Nacon. E não foi por acaso que escolhi a palavra audaciosa para definir a opção técnica e de narrativa que o estúdio tomar para o desenvolvimento deste Hell Is Us, porque a verdade é que apresentar um jogo single-player onde não existe um mapa para ser seguido, apesar de ser em open world, e sem qualquer tipo de indicações do que fazer a seguir, não pode ser definida de outra maneira. Quer dizer, poder pode, tenho a certeza que haverá jogadores que vão odiar esta opção, mas mesmo esses não poderão dizer que as pistas, a informação detalhada que nos é fornecida ou a lógica não está lá toda, apenas pode é ser um estilo, ou uma proposta que não procuram num videojogo. Para mim, tornou-o um dos melhores jogos deste ano.
Para quem acompanha o nosso site e, em particular, as minhas análises e gostos pessoais, sabe que eu sou fã do género metroidvania, logo não ter um indicador de que trajecto seguir, que passos dar para completar os objectivos principais e secundários, nunca foi um problema para mim. É um género que exige dedicação, é um facto, e exige também um exercício de memória elevado e que as sessões de jogo sejam longas para não perder o fio à meada, mas intelectualmente é dos mais desafiantes e recompensadores. No entanto, é verdade que no estilo de jogo single player, na terceira pessoa, com bastante acção à mistura, tal não acontece muito, para não dizer que é raro, mas a Rogue Factor fez um all-in em Hell Is Us e em praticamente tudo a que se propôs não desapontou. Talvez nos caracóis da personagem principal, mas lá chegarei.
Comecemos por dar algum contexto ao jogo: em termos de narrativa não posso dizer demasiado porque vos tirará a experiência, mas até por aquilo que foi apresentado em trailers e na BD disponibilizada no site da Nacon que refere acontecimentos anteriores ao próprio jogo em si, já ajuda a perceberem um pouco esta narrativa. Começando pela BD com argumento de Stu Taylor, recuamos até 1993 na fronteira hermita Hadea, de onde toda a gente quer sair, devido à Guerra Civil que se vive, mas também onde alguns querem voltar, entre os quais Rémi, a personagem principal do jogo e que encarnamos, pois foi separado dos seus pais quando era miúdo.
Nesta BD vemos como Rémi, agora já adulto, fez parte da ON, os chamados Peacekeepers, uma espécie de Capacete Azuis das Nações Unidas – sim, há muitas parecenças com o mundo real, apesar dos autores afirmarem explicitamente no início do jogo que é uma obra ficcional – e de como desertou e foi procurar respostas por si mesmo. Aliás, é aqui que percebem que existe uma verdade muito cruel para descobrir do que se passa realmente em Hadea. Na recta final da BD, Rémi consegue o que quer: roubar uma espécie de iPad que tem informação útil, mais do que tudo, a forma de voltar a entrar em Hadea.
É a partir desse momento que entramos no jogo em si, não sem antes percebermos que fomos raptados e estamos detidos numa base qualquer, teoricamente já em Hadea, onde uma personagem muito estranha nos aplica o soro da verdade para saber tudo o que andámos a fazer até chegar ali e o que descobrimos. Ora, é nesses flashbacks que se passa o jogo, começando pelo ponto onde desertamos da ON, trocamos de roupa e tentamos encontrar o caminho certo.
Encontrar o caminho certo será aquilo que vamos fazer ao longo de toda a nossa jornada com Rémi, ao início sem qualquer tipo de arma, apenas com a sua perspicácia. É assim que vamos falar com Ernest Cadell, um velho que está escondido numa cave e que perdeu 3 dos seus 4 filhos para a guerra. É também aqui que percebemos a mecânica dos diálogos de Hell Is Us, onde cada pergunta e cada resposta pode dar origem a novos detalhes que nos vão levar a novas aventuras ou apenas ao objectivo em mente. Não querendo spoilar demasiado, mas apenas para que percebam o conceito, 10 horas depois vamos encontrar esse tal filho que nos vai dar uma informação crucial para desbloquear uma nova localização que só conseguimos verdadeiramente saber qual é, porque o seu pai, o tal velho que encontrámos no início do jogo, nos vai dizer qual é.
E é nestes pormenores, neste elaborado guião criado pela Rogue Factor, onde tudo é relevante, onde estamos sempre a tomar apontamentos num bloco de notas de possíveis pistas, dos mapas desenhados à mão para não nos esquecermos de portas que ainda não conseguimos abrir, que este jogo me fascinou tanto. Sou extremamente honesto e pensei que assim que o mapa abrisse um pouco mais, como acontece com várias localizações a que vamos ter acesso, que se tornasse um pesadelo saber para onde ir e o que fazer, mas a verdade é que o level design está tão bem feito, que pela lógica dos nossos apontamentos e dos dados recolhidos naquele tal iPad, ou pela pura exploração vamos sempre lá chegar, é incrível.
Explicar-vos como tudo naturalmente acontece, ainda para mais sem dar spoilers, não é nada fácil escrever esta análise, mas acreditem que é altamente desafiante, mas ainda mais recompensador. Houve vários momentos em que pensei: “estou feito ao bife, eu não vou conseguir desvendar isto e vou ficar aqui preso…”, ainda para mais, tendo em conta que estive a jogar Hell Is Us semanas antes de ser lançado, portanto não houve ajudas do amigo Youtube. Aliás, quando isso aconteceu, tive de dar um passo atrás, voltar a ler a informação que tinha no tal iPad, que contém vários organogramas que ligam as pistas com os objectivos, voltar a olhar para as pistas que estão no ambiente, ver os itens que tinha comigo e chegar à solução e ao momento Eureka! que é tão, mas tão recompensador.
Player-plattering: devolver a autonomia ao jogador
E não vos vou mentir, é muita coisa para absorver, muita coisa para memorizar e muitos quebra cabeças, mas a maravilha do jogo é mesmo essa, é aí que este Hell Is Us se torna tão imersivo. Não é por ser primeira pessoa, até porque não é, não é por ser uma recriação fiel do mundo em que vivemos, é pela história, pela narrativa e a forma como é contada, onde somos nós que a descobrimos e desvendamos a cada momento e que decidimos o que fazer e por onde andar, porque não há indicações, nem GPS, nem nada que se pareça. Quando um jogo me torna a sua personagem principal, é essa a imersão que me prende e fascina.
A Rogue Factor apelidou este conceito de player-plattering que nasceu de uma observação muito simples, segundo Jonathan Jacques-Belletête, Director Criativo e da Arte do jogo: “Cada vez mais jogadores expressam a sensação de estarem a ser demasiado conduzidos. Em muitos jogos modernos, quando uma personagem nos dá uma missão, já nem precisamos de prestar atenção ao que ela nos diz — podemos saltar todo o diálogo porque sabemos que vai aparecer um marcador no mapa, o diário de missões será atualizado automaticamente e seremos guiados até ao destino por uma espécie de GPS mágico.” O player-plattering é, assim, uma filosofia de design que convida os jogadores a abdicar de todas as formas de assistência intrusiva para redescobrir plenamente o prazer imersivo dos jogos de aventura.
O termo surgiu em contraste com a expressão inglesa silver-plattering — “servir em bandeja de prata” — que corresponde a entregar todas as respostas diretamente ao jogador. Em Hell is Us, a ideia é devolver-lhes a autonomia: os jogadores terão de confiar nos seus instintos, na capacidade de observação e no raciocínio para progredir. “Para que o player-plattering funcione, os diálogos têm de ser concisos e diretos, e as pistas fornecidas precisam de ser fáceis de memorizar”, sublinha Jacques-Belletête. Já Antoine Vachon, Diretor de Áudio na Rogue Factor, acrescentou: “O conceito de player-plattering também se reflete no design sonoro do jogo. Certos elementos e pistas auditivas foram pensados para desafiar os jogadores e fazê-los perceber que ouvir pode ser tão importante quanto observar.”
O design sonoro como ferramenta de jogo
E se já referi a questão narrativa, também tenho que referir o brilhante trabalho no design de áudio, porque, como referia Antoine Vachon, a equipa da Rogue Factor colocou pistas e auxiliares nos sons do jogo. Desde logo a presença das criaturas são-nos indicadas por uma espécie de um som hertziano quando nos aproximamos, o mesmo acontece com os Time Loops, do qual falarei mais à frente, mas também de alguns NPC’s, não só em alguns diálogos que têm entre si, mas também para encontrá-las em alguns momentos, como um bebé que chora nos esgotos, por exemplo. Mas ainda mais impressionante é a banda sonora que acompanha o jogo, composta por Stéphane Primeau, músico de bandas como os Unexpect, banda de metal progressivo que ainda fez uma tour com os Dream Theater, e do projecto electro-edm chamado iFURY, mas que já leva 11 anos a compor para videojogos tendo passado ainda pela Cyanide. Desde o maravilhoso genérico, (porque é que os jogos deixaram de ter genéricos?), passando por todos os temas electrónicos que se misturam perante a diversidade dos cenários e que dão a sensação de opressão e tensão. Sentimos que o jogo tem uma identidade muito própria, até na componente sonora.
Sistema de stamina e dinâmica de recuperação
Posto isto, falemos também do combate porque faz parte do jogo, mas ao contrário de outros single players de acção e exploração, este não carrega o mapa de inimigos e não faz “perder tempo” para esticar o jogo. Aqui, os inimigos são colocados em locais específicos, alguns que nos ajudam a perceber por onde ir, porque podem estar a proteger algo importante ou porque estão a proteger alguma entrada ou algo parecido. As criaturas que nos vão atacar, mas apenas só quando as enfrentamos, é curioso depois perceber a razão pela qual não vão andar atrás de nós pelo mapa, são perturbantes.
Essas entidades pálidas e disformes, conhecidas como Hollow Walkers, são uma espécie de cópia distorcida de pessoas que viveram uma emoção particularmente intensa. Em certas situações, podem estar ligadas a outro tipo de inimigos, os Hazes, representações físicas de uma emoção específica. O seu design está muito bem conseguido, porque apesar de serem completamente brancos, assumem várias formas, parecendo simbióticos e “vazios”. Isso assusta, de forma desconfortável até, especialmente quando enfrentamos aqueles que têm um elo de ligação que os protege e que invoca algumas das emoções escolhidas de entre as oito mais intensas da Wheel of Emotions do psicólogo norte-americano Robert Plutchik: luto, terror, êxtase e fúria.
Portanto, como já perceberam, temos já aqui um conjunto de variáveis para o combate que nos vai levar a abordar cada um deles com alguma estratégia e cautela.
Rémi no início vai ter acesso a uma espada feita de um material específico, o único que embutido nas armas os pode derrotar, mas depois vai ter ao seu dispor machados, espada longa, martelo e outros que vão fazer com que a jogabilidade com cada arma seja diferente. Os machados e a espada curta são as armas mais rápidas, mas as mais lentas como a espada longa e o martelo dão muito mais dano. Como o jogo, apesar de não ser um soulslike, tem alguma estratégia envolvida, dominar e usar a melhor arma para cada ocasião é importante. E não é um soulslike porque não é tão punitivo, mas existem algumas parecenças, especialmente porque temos uma barra de stamina para todas as nossas acções.
Para explicar um pouco melhor, basicamente quando enfrentamos algum inimigo ou conjunto de inimigos, temos o ataque leve e o ataque forte, o defender e o deflectir. Estas acções vão gastar, todas elas stamina, mas esta pode ser recuperada, e não apenas e só, porque ficar parado e “recuperar o fôlego”. Mas para isso acontecer temos que carregar num botão num determinado timing, e é aqui que o jogo é diferente de outros, é que quando desferimos ataques nos adversários e somos bem sucedidos sem sofrer dano do oponente, temos a oportunidade de subir a barra de vida e stamina, que funcionam em uníssono, isto se quando uma aurélola branca aparecer à volta da nossa personagem, pressionarmos no shoulder button. Esta dinâmica é interessante e estranha, no início, mas torna os combates mais intensos e estratégicos. Porque, como a stamina está ligada à vida, isto é, se sofrermos dano, a barra de vida diminui e a barra de stamina, como não vai subir para além do ponto de onde está a nossa barra de vida, limita as nossas acções sem que fiquemos exaustos e indefesos. Ou seja, conseguir atingir os inimigos e conseguir recuperar, no timing certo a vida e a stamina tornam-se assim parte fulcral da jogabilidade.
Para vos ajudar na estratégia de combate, o nosso drone em forma de pássaro, KAPI, que nos acompanha ao longo de toda aventura, vai poder executar alguma acções para nos safar de alguns perigos. Pode por exemplo desorientar inimigos, para ganharmos fôlego e stamina, pode fazer-nos ganhar tempo, porque os ataques fortes são “charged“, portanto temos que carregar até ficarem mais poderosos para os depois libertar, e o drone pode ainda ajudar em ataques especiais que vamos desbloqueando mais para a frente. Também mais para a frente, vão ter acesso a executar alguns poderes com as vossas armas, que vão estar associados a glyphs que vão poder embutir nas vossas armas através do ferreiro que vos vai ajudar, e estes glyphs têm vários perks, também eles a envolver os as tais 4 emoções, e sim, vai dar para fazer builds mesmo, com outros instrumentos de defesa activa e passiva. Ah e é claro, o melhor armamento e glyphs são desbloqueados através da exploração, dos puzzles e das boas acções que fizerem.
Boas ações e dilemas morais
Falando em boas acções, o jogo dá-nos várias lições de moral pelo caminho, mas esta em particular: ajudar as pessoas que viram as suas vidas devastadas pela guerra. Pode ser apenas dar um funeral digno a alguém, dar leite a uma criança ou os comprimidos a uma rapariga, mas que vão exigir que estejam atentos e que explorem o mapa em cada recanto. E algumas podem demorar horas para encontrarem uma solução, ou um item, e quando passar demasiado tempo, poderá ser tarde de mais. E aí vão também ter que lidar com a frustração e a perda.
Falemos agora de level design porque o mesmo é fundamental para tornar este jogo tão apetecível de princípio ao fim. Se no início da nossa aventura o mapa é algo pequeno, onde facilmente vamos saber por onde andar, a partir da segunda localização tudo isso muda drasticamente. É curioso como no tal primeiro mapa que referi, os developers souberam instruir a nossa mente para estarmos atentos aos pormenores, isto porque há um caminho que temos que percorrer ouvindo uns espantas espíritos a tilintar ao vento e outro que temos que ver umas marcações nas árvores e, depois disso, percebemos como vamos ter que olhar para o jogo daí para a frente.
O segundo mapa dá-nos o receio de nos perdermos com facilidade, apesar de ter uma área mais fechada, sendo uma cidade com alguns sobreviventes, mas é rodeada por um descampado verdejante e com vários monumentos espalhados pelo mapa com mil e um segredos por desvendar.
Não vos quero spoilar e mesmo que quisesse não sei se conseguiria descrever tudo, mas ao longo desta aventura, esgotos, cavernas, bibliotecas, cidades em chamas, monumentos megalómanos, bases secretas ou cenas paranormais farão parte do cardápio, mudando constantemente o cenário de cada objectivo. Às vezes os próprios mapas vão mudar em momentos diferentes, nunca dando a sensação de cansaço de andar de um lado para o outro e dando uma jogabilidade diferente também. Tudo está envolto em secretismo, mistério, um lore brilhantemente escrito e sempre interactivo com vários objectos e uma procura pelo conhecimento que nos fascina.
Reflexos da guerra real em um país fictício
E até por isso mesmo, deixem-me voltar um pouco à história do jogo, porque acabei por falar apenas ao de leve, e queria fazer aqui um paralelismo e até uma reflexão sobre o que representa. A trama de Hell is Us desenrola-se em Hadea, um misterioso país fictício em quase total autarcia, de onde ninguém pode sair — muito menos entrar.
Rémi, o protagonista, nasceu em Hadea, mas foi contrabandeado para fora ainda em criança pelos seus pais. As únicas memórias que guarda são do pai, ferreiro numa aldeia chamada Jova, e da mãe, que lhe confiou um estranho medalhão antes de lhe dizer para nunca mais regressar. Criado como órfão e passando de família de acolhimento em família de acolhimento, Rémi cresceu assombrado por perguntas sobre as suas origens e sobre os motivos que levaram os pais a abandoná-lo.
Basta dar conta desta parte para começarmos rapidamente a pensar a ligação com o mundo real e, tendo em conta que se passa na década de 1990, parece-me óbvio que há aqui uma reflexão que o jogo se propõe a fazer, mesmo que com uma história ficcional. Situar o jogo numa era moderna permite que os jogadores se envolvam emocionalmente de forma mais intensa. Além disso, essa década corresponde a um período histórico em que ocorreram inúmeras guerras civis mortíferas, como as do Ruanda, da Serra Leoa ou da antiga Jugoslávia. E Hell is Us retrata as calamidades da guerra e aborda a capacidade dos seres humanos para cometer atos de barbárie indescritível.
Os developers não queriam usar o sofrimento real de um povo como pano de fundo para o jogo, e por isso optaram por criar um país fictício. Mesmo que a dor dos seus habitantes seja inventada, isso em nada diminui o seu significado universal. E se pensarem em como a realidade e a ficção neste jogo estão de mãos dadas, vão rapidamente perceber que há muitos outros pormenores que se relacionam com isto. Desde logo “A Calamidade” é o nome dado ao surgimento de estranhas criaturas que lembram antigas lápides e monumentos na região, e que Rémi terá de enfrentar ao longo da sua jornada.
Embora o tema central de Hell is Us explore a violência e o lado mais sombrio das emoções humanas, os jogadores nunca são obrigados a combater outros humanos. Para a equipa de desenvolvimento, era crucial que a experiência não contribuísse para o ciclo de brutalidade humana. Assim, Rémi confronta apenas as misteriosas criaturas que apareceram com a Calamidade.
No entanto, a tal brutalidade do ser humano está espelhado nos rostos, nas vivências, no destino de cada pessoa que encontramos, que conhecemos, ou do qual ficamos a saber qual foi o seu fado. Não há como não pensar naquilo a que assistimos hoje, em directo e ao segundo, no nosso mundo, onde existe tanta calamidade a ser praticada, tanta gente a sofrer sem ter qualquer ajuda, de como líderes de nações inteiras subjugam outras, dizimam a seu bel-prazer, apenas por proveito próprio ou por querer seguir uma ideologia ou religião e implementá-la nos outros. Aliás, vão perceber rapidamente durante o jogo em como existe duas religiões, dois povos, os Palomists e os Sabinians quando chegam a Jova. É nesta pequena cidade onde uma força para-militar AASF liderada pelo Captain Vaas demonstra como trata todos os Palomists, como baratas. A felicidade dos seus soldados em matar tudo o que é Palomist é insana, mostra a brutalidade humana no seu expoente máximo, retratado num jovem que é obrigado a tocar violoncelo para o capitão o tempo todo, mas como só sabe uma música, vê que a sua vida corre perigo, e corre mesmo. E isto é só um exemplo, muitos mais colocarão o jogador desconfortável ao longo desta aventura, onde queremos que os “bons” vençam, seja lá quem forem, desde que sejam boas pessoas.
Este espelho de dois povos, duas culturas, duas religiões, mais uma vez nos fará pensar em conflitos reais e tão prementes nos dias de hoje.
O papel das dungeons e os seus desafios únicos
Por outro lado, e isto leva-nos às dungeons do jogo, Hadea esconde um passado misterioso e abriga estas antigas masmorras esquecidas que os jogadores terão de explorar para avançar na sua missão e desvendar os segredos dos estranhos acontecimentos na região. As masmorras são parte essencial da aventura, oferecendo não só pistas para compreender a profunda história de Hadea, como também desafios memoráveis. Cada masmorra é única na sua atmosfera, desafios e significado. Para superá-las, os jogadores terão de recorrer a diferentes tipos de competências: interagir e observar atentamente o ambiente, usar o raciocínio lógico e, sobretudo, enfrentar os inúmeros inimigos que se atravessam no caminho. Além disso, cada masmorra culmina num confronto final intenso, que conduz a revelações capazes de lançar luz sobre o passado tortuoso deste recanto remoto do mundo.
As masmorras seguem a mesma filosofia que orienta todo o jogo, o player-plattering, onde o jogador redescobre o prazer de explorar por si próprio, sem ser constantemente guiado pela mão. No interior destes espaços profundos e misteriosos, é essencial prestar atenção ao ambiente para se orientar e descobrir como ultrapassar os muitos obstáculos que surgem. Cada masmorra tem a sua própria identidade e momentos marcantes, culminando num verdadeiro sentimento de conquista quando é concluída.
Por fim, falta falar dos Time Loops, como tinha prometido. Em praticamente todas as áreas dos vários mapas do jogo vamos encontrar um ou mais Time Loops que são basicamente uma espécie de bolha do tempo a que só conseguimos aceder se derrotarmos os seus Guardiões. A importância do Time Loop em si é, por um lado, quando o fechamos, as criaturas deixam de reaparecer no mapa e por outro, porque recebemos várias recompensas quando o fazemos. No entanto, fechar um Time Loop não é assim tão simples. Para isso, precisamos de derrotar os tais Guardiões para entrar, e depois de entrarmos temos que ter o respectivo Prisma límbico para interromper aquela dura memória que repete sem fim no seu centro, fechando o Time Loop para sempre.
Encontrar os prismas, é mais um factor para varrermos os mapas de fio a pavio para conseguirmos este objectivo. Muitas das recompensas de os fecharmos podem ser items fulcrais para acabar missões secundárias, mistérios ou boas acções. Por isso, sim, vão querer tratar deste assunto, só que apenas a partir de determinado momento do jogo em que conseguimos recolher uma espécie de bússola mágica que nos aponta a direcção dos Guardiões dos Time Loops.
Referir apenas, até para contextualizar esta questão do Time Loops, a importância de os fechar e não ter mais criaturas da próxima vez que voltarem a determinada área é bastante importante, porque, logo no início do jogo, vão ter acesso a um APC, uma espécie de tanque blindado que vos vai levar ao longo do mapa das várias áreas a descobrir e desbloquear. É uma espécie de quartel-general móvel que funciona como passagem de biomas, mas também como checkpoint, visto que os vários pontos de save espalhados pelo mapa, quando vamos a pé, nos podem também fazer regressar rapidamente ao APC para irmos para outro lado. Servirá para mais coisas ao longo do jogo e para outros diálogos e desenvolvimentos, mas depois logo vêem.
E qual era a tal questão dos caracóis? Perguntam vocês e muito bem, pois é os caracóis que a nossa personagem principal, Rémi, ostenta. É difícil olhar para ele e não pensar que poderia ser o meio-irmão do Marco Paulo. Parece que não encaixa bem na cabeça ou então que a sua mãe era a figura mitológica, Medusa. O que vale é que a maior parte do tempo Rémi anda de boné no jogo e isso não nos faz tanta confusão. Devo confessar que esta foi a única coisa que não gostei no jogo e, para um jogo que tem tanta coisa, acaba por ser uma elogio.
Hell Is Us é uma experiência que se distingue pela coragem de não seguir fórmulas seguras. A Rogue Factor arriscou numa proposta exigente, que exige atenção, memória e dedicação, mas que recompensa com momentos de descoberta e imersão raros no panorama atual dos videojogos. A combinação entre narrativa densa, level design inteligente, combates estratégicos e uma forte componente moral transforma-o não apenas num jogo, mas numa reflexão sobre a guerra, a humanidade e as escolhas que moldam o nosso percurso. Pode não agradar a todos — sobretudo a quem procura experiências lineares ou guias constantes — mas para quem se deixar levar pelo conceito de player-plattering, este título será, sem dúvida, um dos mais marcantes de 2025.