Developer: Carboard Computer / Annapurna Interactive
Plataforma: PS5, Xbox Series X|S, PC, Nintendo Switch, PS4, Xbox One
Data de Lançamento: 18 de Agosto de 2023
Kentucky Route Zero foi lançado há uma década através de crowfunding no Kickstarter e dividido em cinco partes e para o PC. Na altura, a primeira parte saiu em 2013 e a última sairia 7 anos depois, em 2020. Esta não seria a última vez que ouviríamos falar do jogo da Cardboard Computer, visto que, com o último acto, sairia uma versão consola, apelidada de TV Edition e em 2022 saiu para os smartphones através da Netflix. Agora é a vez de chegar a PS5 e também à Xbox Series S|X pelas mãos da Annapurna Interactive.
O jogo chegou-me às mãos para analisar quando, curiosamente, já andava a jogá-lo no meu smartphone, portanto, acabei por perceber as diferenças nas versões, que vou destacando ao longo deste texto.
Para quem não conhece a premissa e apenas está agora a ter o primeiro contacto com o título, Kentucky Route Zero segue a narrativa de um condutor de camiões, que transporta a última peça de uma loja de antiguidades e que seria o seu último trabalho. O problema é que essa entrega tem que ser feita na Route Zero em Kentucky, no número 5, em Dogwood Drive. E porque é que é um problema? Porque teoricamente essa estrada não existe e porque esse caminho através da Route Zero é apenas um mito, mas será?!
É essa questão que nos ecoa ao longo de todo o jogo, e quanto mais desbravamos os vários caminhos do sonho americano, mais perdidos nos sentimos, mas ao mesmo tempo mais perto ficamos, não da rota em si, se calhar, mas dos sonhos das personagens que vamos conhecendo e de como foram despedaçados nessa estrada que é a vida.
A progressão é muito linear, joguei os primeiros dois capítulos no meu smartphone, e aí, o jogo funciona como uma espécie de point and click da velha guarda, apontando o caminho a Conway e interagindo com as personagens nos mais profundos diálogos. Todo o jogo é feito de escolhas, muitas delas definindo o rumo dos acontecimentos, ou pelo menos a definir a linha temporal em que acontecem, visto que alguns são tão certos como o destino. Ao contrário de jogos mais tradicionais, não teremos items para usar quando quisermos, não temos um inventário, não temos que fazer uma gestão de items, mas, ao mesmo tempo, temos que fazer uma ginástica mental enorme para acompanharmos os acontecimentos.
Kentucky Route Zero é super desafiante e estimulante nesse capítulo. Como disse, no smartphone com os dedos indicamos o que a personagem deve fazer, seja Conway ou Shannon mais à frente, na consola, neste caso na PS5, é o analógico esquerdo que os movimenta, sendo que o analógico direito direccional as escolhas apresentadas e para onde “olhar”. Portanto, o foco é total nas linhas de diálogo, elas que desbravam os caminhos que temos que percorrer nas estradas americanas. Será através das respostas que obtemos das interações com as personagens que ganhamos uma direcção para seguir, e aí, andamos por um mapa estadual, a seguir as indicações, mesmo à antiga, de virar à esquerda quando virmos uma árvore que está sempre a arder ou encontrar uma velha casa junto ao lago. Só o nosso pequeno caderno de notas é que guarda alguns apontamentos das localizações que podemos procurar, mas há momentos que nem a lógica compreende e vamos precisar de uma orientação mais espiritual para chegar ao próximo destino.
É esta ligação entre o real e o irreal, entre os fantasmas e o terreno, entre a espiritualidade e a física que nos encontramos. A envolvência da incompreensão dessa pseudo realidade, faz-nos duvidar a cada passo que damos, a cada quilómetro que percorremos e injecta-nos uma quantidade assinalável de mistério e de curiosidade. É esse o motor deste jogo.
Dito isto, tenho a plena consciência que é um jogo para um nicho de jogadores, de uma necessária maturação que o ritmo dos dias de hoje não permitem, mas consigo compreender perfeitamente a questão de ter sido lançado em partes e por actos, sendo que o último talvez seja uma conversa à parte. No entanto, ao contrário de tantos outros, eu não tenho problema algum que um jogo seja criado para um nicho de mercado, acho que faz parte e que nem todos os jogos têm que agradar às massas, nem seguir estereótipos. É isso mesmo que faz Kentucky Route Zero especial ou completamente inócuo, sendo que há elementos de qualidade inegável como a direcção artística de Tomas Kemenczy, os sons de teremin do compositor Ben Babbitt ou a complexa e bem escrita narrativa do jogo de Jake Elliot.
Cada lugar tem um simbolismo, algo de abstrato que podemos tirar sentido, como, por exemplo, o Bureau of Reclaimed Spaces onde temos um andar ocupado apenas por ursos, ou numa floresta onde uma águia capaz de mover casas nos faz companhia. Extrapolamos sentido nestas iconografias, mas também na cruz que cada personagem carrega, no passado que nos quebrou e moldou. É disso que é feito Kentucky Route Zero.
O exemplo perfeito dessa abordagem independente para o controlo do usuário vem no terceiro ato. O jogador chega a um bar com os músicos mecânicos Junebug e Johnny, e é colocado no controlo da letra da música que a dupla executa. As escolhas líricas não fazem diferença para o enredo, e isso dá o tom para Kentucky Route Zero no seu geral: não há opções binárias aqui, apenas escolhas a serem feitas para abrir um caminho à frente.
No entanto, nem tudo são rosas. O jogo padece de um problema que sobressai, o quinto acto. Vale a pena lembrar que este último episódio saiu apenas com a versão completa do jogo e que demorou mais do que os demais a ser concretizado. Foram precisos 4 anos e teoricamente seria o mais articulado e longo, mas, no fundo, é o mais decepcionante e dura apenas hora e meia.
Essa decepção parte da diferença na jogabilidade, deixando-nos praticamente a acompanhar os acontecimentos, mais do que os percorrermos e desbravarmos. Uma aventura que até então havia sido uma emocionante jornada na estrada (e nas cavernas de Kentucky) por áreas e personagens surreais torna-se o equivalente a uma busca repetitiva e inconclusiva, sem dar um final às personagens ou algum tipo de conclusão e, em alguns casos, deixando mais perguntas que respostas.
O que vale é que a reflexão está presente ao longo de toda a jornada e, talvez por isso mesmo, nos custe que não se sinta a sua conclusão. O jogo funciona como uma lente crítica para a facilidade com que as pessoas podem encontrar conforto dentro de uma “estrutura”, quer seja da empresa para a qual trabalham, para a qual obtêm sustento para a sua família, definindo as suas vidas. A forma como a “empresa” deixa de pensar no bem-estar dos seus funcionários e o resultado financeiro abalroa toda a moralidade e os nossos ideais. É sobre como esses impactos externos, fora do nosso controlo, nos podem moldar, mas não definir. No fundo, é sobre acomodação, resignação, desespero, ou então sobre a esperança, a coragem e a loucura.
Kentucky Route Zero: TV Edition não é um jogo para todos. É bizarro, é difícil, é desafiante, e obriga-nos a ir a um lugar escuro que nem sempre é confortável. Mas o jogo é sobre isso mesmo, e o desconforto que produz em nós, ao mesmo tempo, é rico na reflexão que proporciona e na beleza da sua construção como um todo. Um jogo de culto, mesmo que para poucos.