Developer: LKA, Wired Productions
Plataforma: Xbox One, Xbox Series, PlayStation 4, PlayStation 5 e PC
Data de Lançamento: 24 de Fevereiro de 2022

Depois de alguma polémica à mistura, Martha is Dead foi finalmente lançado. O estúdio LKA é relativamente conhecido por experiências cujo teor procura ser desconfortável, e aqui foi elevado a um nível verdadeiramente inédito. Por conseguinte, as cenas chocantes que caracterizam o jogo foram motivo de censura nas versões para a PlayStation 4 e PlayStation 5, evitando assim o perigo de ferir a sensibilidade de pessoas mais impressionáveis.

Curiosamente, foi algo que até favoreceu a sua divulgação, uma vez que atraiu a atenção que não teve até então, e quem gosta de conteúdos mais perturbadores ficou provavelmente interessado. Este estúdio italiano já nos havia trazido The Town of Light, partilhando do mesmo arranjo de visões e sugestões fortes que tanto se reflectem numa perspectiva imersiva na primeira pessoa, como numa narrativa algo grotesca e desconcertante.

Mas é assim tão chocante? Em algumas alturas é. E ainda bem. Do ponto de vista do experimentalismo artístico, é hoje um acto de coragem desafiar os padrões desta crescente autoridade social invisível e ditadora de uma margem vai encurtando a cada dia. Infelizmente, por causa de uns, pagam todos, e jogos como este serão presumivelmente mais raros no futuro.

Não é um jogo que tente chocar gratuitamente. Antes pelo contrário. Escolhe com rigor os momentos de desassossego, conseguindo que o jogador estabeleça uma ligação com a personagem e identificar-se com o seu desespero. Martha is Dead não é a típica obra de terror, antes um drama psicológico de alguém que tenta lidar com uma situação angustiante e não avista saída – pelo menos uma que seja clara.

A história transporta-nos até ao período da Segunda Guerra Mundial, na região italiana da Toscânia que era controlada pelos alemães. Giulia é filha de um oficial nazi, e uma jovem apaixonada por fotografia. Excluindo uma relação complicada com a sua mãe, poucas são as preocupações da protagonista, e protegida pelo pai, ignora completamente o que se passa lá fora. Apenas pretende conhecer o mundo através da sua objectiva, e é assim que passa o seu tempo.

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Era um dia como tantos outros, e Giulia, com um evidente entusiasmo, aprontava a sua máquina para mais uma longa sessão da fotografia. Algo lhe capta a atenção no lago, o que após alguma focagem, se vem a revelar ser um corpo que flutua ao favor da corrente. Parte em seu socorro, somente para perceber em completo abalo que, para além de já se encontrar sem vida, é Martha, a irmã gémea que jaz nos seus braços.

Este é o ponto de partida da história, com a narrativa a abordar o processo de luto de Giulia e da sua família, mas sobretudo o que esteve por trás da morte da sua irmã. É uma história sombria e preeminentemente macabra, especialmente no modo em que é conduzida, colocando o jogador numa constante sensação de apreensão e descomodidade. E embora o enredo seja por vezes confuso, cumpre o objectivo de intrigar o suficiente para alimentar a curiosidade e o progresso nesta história de mistério.

É um título que apesar de emprestar ideias mais ou menos comuns de outros exemplares do género, pela sua mistura e pela sua atmosfera consegue oferecer uma criação muito singular. Diria que é em parte familiar, ainda que díspar de tudo o que já tenhamos visto. Tem elementos de suspense, de terror, drama, trauma, e de uma inquietação que nos acompanha até nas tarefas mais básicas.

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 O próprio gameplay guia no sentido de nos concentrarmos nos detalhes de uma maneira intuitiva, mas igualmente meticulosa e precisa. É fácil de ler, mas muito subjectivo de interpretar. O propósito é estarmos de tal forma mergulhados no cenário, que qualquer interacção acaba por ser natural e vivida como se estivéssemos lá. E essa é uma das suas melhores qualidades, sendo principalmente isso que o destaca de outros parentes mais próximos no género.

Um bom exemplo é o episódio da câmara escura, numa simulação minuciosa de como decorre o processo da revelação das fotografias. O nosso envolvimento é total e participaremos em todos os passos. Esse é um momento que define bem as particularidades do jogo, dado que é visualmente sinistro e absorve-nos simultaneamente na actividade em questão. E sim, preparem-se para imagens pesadas e difíceis de esmoer.

Martha is Dead é um ensaio sistémico de observação e de entrosamento com os objectos ao nosso redor. É uma característica comum nestes jogos, porém, neste caso, os gestos são agudamente precisos, levando-nos quase a sentir o que seguramos na mão. “Inventivo” e “palpável” são as palavras que eu usaria para descrever o uso dos analógicos. Tudo é assim mais homogéneo, numa viagem que busca ser, com frequência, sensitiva, emotiva e pungente.

A progressão é realizada como uma sucessão de quebra-cabeças, onde os resultados nos levarão a compreender o que esteve na origem da morte de Martha. Normalmente, só conseguiremos avançar mediante uma certa ordem de acções, seguindo-se depois uma cutscene que será relevante para a narrativa. É um método inteligente de contar a história pela sequência certa e funciona bem, considerando que se trata de uma prosa recíproca entre a relatora e o jogador.

Há um recorrente esforço em confundir-nos para que tenhamos dificuldade em diferenciar o que é, e não é real. O sobrenatural tem também um papel fundamental para criar um clima de ansiedade, assim como as circunstâncias da guerra que aos poucos vão roubando a inocência de Giulia. Determinadas mecânicas de puzzles ajudam nesses factores, como conjugar uma ordem certa de palavras enquanto vagueamos velozmente pela floresta adentro durante o escuro da noite.

É uma jogabilidade única pelo composto de peças que se completam para nos aliciar. Todavia, é ao mesmo tempo essa intimidade que nos amedronta quando temos de descortinar o enigma seguinte. Às vezes pode parecer que está por todo o lado, mas à medida que caminhamos para o final entendemos como tudo encaixa no local correcto.

A sua beleza gráfica e praticamente fotorrealista, tal como uma escolha de cores um tanto esbatidas, são primordiais na concepção deste ambiente fúnebre e tétrico. É daqui que parte todo o suspense, visto que lhe dá credibilidade, mas apela similarmente à nossa imaginação. Existem dois modos disponíveis nas consolas da nova geração, com 4K/30FPS ou 1080/60FPS na Xbox Series X e na PlayStation 5, e 1080/30FPS na Xbox Series S.

Sonoramente é eficaz na construção da conjuntura de horror e as contribuições são diversas. A começar pela banda sonora que sabe imperialmente alternar entre o silêncio e a música temerosa. O italiano é o áudio que está por default e o recomendado, com uma entrega fantástica por parte dos actores. Para quem preferir, é possível optar pela língua inglesa, porém, o voice acting é muito menos satisfatório.

Martha is Dead foi uma admirável surpresa. Quem é apaixonado por videojogos que exploram o terror e uma composição notoriamente original, terá um jogo que vale bem a pena descobrir. Uma excelente amostra de como o género ainda tanto tem para nos surpreender.

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Nuno Mendes
Completamente obcecado por tudo o que tenha a ver com futebol, é daqueles indesejados que passa mais tempo a editar as tácticas do PES do que a jogar propriamente. Pensa que é artista, mas não conhece as cores primárias, e para piorar, é ligeiramente daltónico. Recusa-se a acreditar que o homem foi à Lua.
analise-martha-is-dead<h4 style="text-align: justify;"><strong><span style="color: #339966;">SIM</span></strong></h4> <ul> <li style="text-align: justify;">Artisticamente fantástico</li> <li style="text-align: justify;">Óptima narrativa e atmosfera</li> <li style="text-align: justify;">Uma jogabilidade bastante especial</li> </ul> <h4 style="text-align: justify;"><strong><span style="color: #ff0000;">NÃO</span></strong></h4> <ul> <li style="text-align: justify;">Algumas quebras de frames</li> </ul>