Developer: Atlus, Studio Zero
Plataforma: PlayStation 5, Xbox Series X|S, PC, PlayStation 4
Data de Lançamento: 11 de outubro de 2024
Sem medo de arriscar, a Atlus dá o salto para a vida adulta e em conjunto com o Studio Zero oferece-nos a oportunidade de jogar um dos melhores jogos que já criou. Isto podiam ser balelas ditas por mim, mas para quem tem um catálogo invejável com franquias capazes de fazer muito boa gente comprar consolas, é reconhecer que Metaphor: ReFantazio é um caso sério para todos. Para os que são fãs de Persona, como eu, para os que adoram Shin Megami Tensei, para os que gostam de RPGs de fantasia e diria até mesmo para quem nunca experimentou este tipo de jogo.
A julgar pela qualidade exímia dos seus trabalhos anteriores era difícil ver agora a Atlus a fracassar e ainda que todos estejamos a chorar por um Persona 6, a verdade é que o estúdio dá-nos algo novo e memorável. Num paralelismo com os seus jogos, é como se tivesse aprendido as bases todas na escola e agora vai para as ruas aplicar os seus conhecimentos de forma sábia numa realidade abstrata, de fantasia, onde se discutem temas mais pesados e difíceis de lidar. Religião e política são questões centrais na narrativa, sem ignorar temas fracturantes da nossa praça como o poder, racismo, fanatismo, extremismo, imigração ou até as desigualdades sociais que são o pão nosso de cada dia numa sociedade atual.
É por isso estranho dissociar a ficção da realidade e não é inocente a pergunta inicial que Metaphor: ReFantazio nos apresenta: “Poderá uma simples história de fantasia ser limitada à nossa imaginação? Seria ela algo tão impotente?”. Na minha opinião não pode haver essa limitação a partir do momento em que tudo o que se vê na história, de ficção, está a acontecer, de uma maneira ou de outra, na nossa realidade. Ah, menos a fada que nos acompanha. Essas eu nunca vi nenhuma à minha frente.
Entrando concretamente na narrativa, Metaphor: ReFantazio leva-nos até ao Reino da Euchronia, onde o rei regente é assassinado, aparentemente por Louis, que será o grande antagonista nesta história. A luta pela sucessão ao trono fica em cima da mesa, ainda para mais porque se pensa que o príncipe legítimo também já foi assassinado. No entanto, percebemos logo nas primeiras horas de jogo que afinal ele ainda não morreu, mas que está debilitado e preso a um certo tipo de magia negra que não o deixa melhorar. É preciso então lutar pelo poder e é isso que o nosso protagonista vai fazer, uma vez que tem uma forte ligação ao príncipe desde miúdo.
Sem estragar muito do que vão ver, até porque há muitas dezenas/centenas de horas para explorar, a escolha do novo rei será feita por vários torneios de desafios e popularidade. Como se costuma dizer, o povo é soberano e por isso há que conquistar tudo e todos para que possamos ser reconhecidos e temíveis para o próprio Louis. Será esse o nosso rumo no jogo, intercalando as missões da história com momentos mais sociais, tal como Persona fazia, mas com um ritmo mais rápido e mais direto ao assunto. Aqui também a progressão no jogo é feita com recurso a um sistema de calendário, onde existem dias específicos para determinados acontecimentos da história e outras missões que podem ser completadas até uma data concreta. Podemos acumular várias missões e ir completando as mesmas à medida que os dias passam e desde que não deixemos ultrapassar a data limite, somos livres de decidir o que queremos fazer com o nosso tempo.
Um dos meus medos era perder-me na quantidade de missões secundárias que ia aceitando, mas graças a um menu muito bem feito, as missões todas são mostradas com o seu estado atual e com a data limite para ser feita. Entre tardes e noites, há que saber ocupar o tempo e evoluir em vários aspetos. Podemos ir até às masmorras, explorá-las para treinar os personagens e evoluir o nível de combate ou optar por desenvolver as cinco Virtudes Reais assentes na Coragem, Sabedoria, Tolerância, Eloquência e Imaginação. Existem várias formas para o fazer, desde apreciar paisagens, cozinhar, dar saltos radicais, ouvir as pessoas ou ajudá-las com algo. É importante ir desenvolvendo estas características porque em determinadas conversas só podemos responder de certa maneira caso tenhamos evoluído alguns destes atributos.
Com tanta coisa para fazer, não senti em quase nenhum momento que me estivesse a fartar do que quer que fosse, com exceção nas partes onde me perdia à procura de determinada personagem que me vendia uns bons remédios que me ajudavam a recuperar a minha barra de vida. Mesmo naqueles interlúdios, que nos animes chamamos “fillers” enquanto não chegarmos aos objetivos principais, somos guiados para outras missões completamente surreais e deliciosas ao mesmo tempo, onde nos perdemos durante horas sem dar conta, mas que fazem parte da jornada de uma forma tão orgânica e bem contextualizada naquele universo, que se torna impossível não gostar.
A beleza de toda a aventura não era possível sem os personagens absolutamente carismáticos. Desde logo o nosso protagonista, que pertence à tribo Elda, um povo muito contaminado pela religião que acredita ter herdado magia perigosa, acabando por ser muitas vezes discriminado e detestado em todo o reino. Com ele está sempre ao seu lado a fada Gallica, fiel escudeira, guia e voz da razão, que apesar de não participar nas lutas diretamente, tem um conhecimento em magia muito acima da média. Strohl é desde os primeiros instantes de jogo um dos nossos aliados e embora pareça um nobre, há todo um mistério para descobrir sobre a vida dele e as situações que o levaram a lutar ao nosso lado.
Maria, Hulkenberg, Neuras, a lista é infindável e podia continuar a enumerar a quantidade de personagens importantes e ricas em conteúdo que existem, mas são tantas que acabaria por me alongar mais do que devia e provavelmente arriscava-me a estragar algumas das boas surpresas que o jogo nos dá. É preciso “perder” tempo com elas e dar-lhes atenção para criar vínculos com os nossos Seguidores e será graças a eles que podemos ir evoluindo o nosso nível de amizade com cada um e ir desbloqueando novas habilidades e também novas missões.
Adorei conhecer a maior parte dos personagens e, de uma maneira ou outra, todas acabam por ser marcantes na longa jornada de Metaphor: ReFantazio. No entanto, não posso deixar de falar em específico de More que será um elo de ligação essencial para todos os que lutam ao nosso lado. Ele é o autor de um livro que o nosso protagonista carrega religiosamente, e que pertencia ao príncipe que está debilitado. Esse livro conta um sonho utópico em que o mundo viverá sem maldade e sem desigualdades sociais e financeiras. É engraçado como esse livro parece ter sido “proibido” e destruído dentro de certas religiões, contribuindo ainda mais para adensar a história do jogo e o paralelismo com alguma da nossa realidade.
Ele tem um papel parecido ao de Igor em Persona. É alguém que está entre a realidade e o sonho, num local chamado Akademeia e é ele que nos vai permitir aprender e evoluir os Arquétipos. Os Arquétipos funcionam como fontes de poder que permitem usar habilidades nos combates, quase como se fossem tipos de classe. Eles são despertados em pessoas especiais como é o caso do nosso protagonista e de muitos dos personagens com quem nos vamos cruzando. Existe uma vasta lista de 46 para irmos descobrindo aos poucos. Cada membro do nosso grupo de combate pode aprender qualquer um dos Arquétipos, mas quando queremos atribuir um a determinado personagem, isso custa-nos MAG, um dos recursos que mais vamos precisar no jogo. É por isso necessário saber bem o que se quer e escolher bem o Arquétipo para cada personagem.
Eu fui alterando muito cada um deles e se no início, coloquei todos como Lutador, a verdade é que percebi que mais valia ir variando. Guerreiro, Comerciante, Mago, Curador, Cavaleiro, e por aí fora, a lista vai crescendo e com ela vamos evoluindo cada um deles para ficarmos mais fortes e conseguir lutar pelo trono. Fui trocando e ajustando os Arquétipos à minha medida e graças a um recurso que permite reciclar poderes, ou melhor, transferir certas habilidades de um arquétipo para outro, experimentei uma data de combinações possíveis até encontrar a que mais me dava garantias em combate.
Combate esse que podia ter traído Metaphor: ReFantazio, uma vez que recorre em grande parte às lutas por turnos, cada vez menos utilizada noutros jogos do género. Ainda assim, os desenvolvedores foram inteligentes e misturaram os tradicionais golpes por turnos, com possíveis ataques em hack and slash antes de se iniciar uma luta. Graças a um sistema de scan, conseguimos muitas vezes perceber se os nossos inimigos são mais fracos, do mesmo nível ou mais fortes que nós. Caso sejam mais fracos, podemos eliminá-los rapidamente apenas com um ataque rápido, o que nos poupa-nos tempo, dá-nos variedade e não nos faz andar a secar em lutas com tudo o que mexe.
De resto, como bom aprendiz de tudo o que Atlus já fez, o combate por turnos segue a mesma lógica de jogos passados, mas melhora. Basicamente cada lutador ataca na sua vez, ambos têm duas barras, uma de energia e outra relacionada com magia que se vão gastando à medida que sofremos dano ou usamos determinada técnica. Notei que é preciso uma maior gestão de estratégia, principalmente em batalhas longas com adversários mais complicados. Inova com a colocação dos lutadores um passo à frente ou um passo atrás, contribuindo para um maior ou menor dano, quer no ataque, quer na defesa. Há ataques específicos que podemos usar conforme a nossa posição em combate, o que dá maior vida às batalhas. Podemos ainda fazer ataques conjuntos com a chamada Síntese, que se revela fundamental para derrotar bosses e adversários com um nível muito superior. Esta união de esforços vai-se aprimorando com o tempo e quanto mais diversificamos os Arquétipos entre eles, mais ataques teremos. Podemos até recorrer ao menu para ver as melhores combinações de Arquétipos para conseguirmos usar.
Quanto aos inimigos, vão encontrar vários tipos de monstrinhos, que apesar de não serem apelidados de Personas, podemos considerar que são primos, dada a variedade que vão encontrar. Desde o guarda mais simples, aos cães seguranças, passando por belos dragões e claro, os bosses que nos aparecem com formas totalmente tresloucadas, mas que ficam bem esteticamente com a fantasia montada à volta do jogo. A direção de arte merece um aplauso pelo trabalho bem feito, desde as diversas áreas, aos diferentes ambientes e traços de cada personagem e até o nosso veículo que é, no mínimo, hilariante.
Graficamente o estilo anime mantém-se em forma e nas cinemáticas esquecemo-nos facilmente que estamos a jogar um jogo. Boa imagem, boa realização, as vozes, tudo está em perfeita sintonia, até para nós portugueses que agora temos o texto traduzido para português do Brasil. E como devem calcular o que não falta é texto para ler como já é hábito neste tipo de RPG. Também a nível sonoro as coisas estão muito bem conseguidas com cada fase do jogo a ser pautada por certas canções atmosféricas, sons celestiais ou coros de igreja mais carregados, o que nos permite perceber o peso de cada momento da narrativa.
Não posso terminar a análise sem falar na lição que o jogo nos dá. Ele fala-nos de esperança e o papel que ela pode ter em pessoas que estão descontentes com o estado atual das coisas. Num mundo cada vez mais atormentado e em que não se pode dizer nada porque fica logo tudo ofendido, Metaphor: ReFantazio é ar fresco para os nosso pulmões. Não esconde as problemáticas, fala sobre elas, sem pretensões a um lado ou ao outro. Não nos diz o que está certo ou errado, simplesmente mostra-nos os factos e cabe-nos julgar que mundo queremos para o futuro. É impossível dissociar os acontecimentos do jogo do que se passa na realidade. Não que esteja diretamente relacionado com algo específico, mas em abstrato, vemos um reino em guerra rodeado de gente maldosa capaz de fazer tudo, até matar, para chegar ao poder. Poderá uma história de fantasia ser mais real que isto? Eu acho que não.
Metaphor: ReFantazio é um dos melhores RPGs que vão jogar. Com toda a familiaridade dos jogos anteriores da Atlus, consegue a difícil tarefa de elevar ainda mais a fasquia daqui para a frente e colocar-lhe em cima temas densos e sensíveis em equação. É um jogo de fantasia que demonstra muito do mundo em que vivemos e o tempo dirá qual o papel dele no futuro dos jogos deste género. Salta diretamente para a minha lista de favoritos e dada a qualidade, tenho a certeza que a franquia não fica por aqui.