Developer: Nomada Studio
Plataforma: PlayStation 5, Xbox Series X|S, PC
Data de Lançamento: 15 de outubro de 2024
Há estúdios que nos conseguem sempre surpreender, mesmo quando achamos que é impossível o fazer. Depois de Gris, aclamado pela crítica, os Nomada Studio voltaram a trazer uma narrativa tocante, sensorial e transformadora com Neva.
Parte do encanto do trabalho deste estúdio são as paisagens, as personagens, os vários planos que conferem profundidade e dimensão a este side-scroller 2D, com todos estes elementos e as animações desenhadas à mão. Pode ter passado despercebido para alguns, mas acho mesmo que a arte do jogo ainda vai arrecadar uns quantos prémios nessa categoria nas várias galardoações deste ano. De facto, o traço é único, a composição das imagens, a sua sobreposição cria ambientes lindíssimos e o level design foi concretizado para que cada momento siga as fórmulas do cinema capturando o espaço, a essência das acções, os níveis de grandeza, os sentimentos, como se tratasse de um filme de animação praticamente mudo, visto que apenas ouvimos a voz da nossa personagem a chamar por Neva ao longo de toda a aventura.
Vamos começar primeiro por falar da história do jogo. Uma história que se entrelaça com a do directo criativo, Conrad Roset, visto a inspiração para Neva ter vindo de um período de observação do mundo e da sociedade. Segundo o próprio, depois de ter assistido a todo o tumulto da pandemia da COVID-19, mas a transformação social e os radicalismo, para além das preocupações com as alterações climáticas, num ambiente em que viu nascer o seu filho, fê-lo reflectir sobre os ciclos da vida. Um jogo que reflecte os vários estados de espírito que um pai ou uma mãe tem com o seu filho/a ao longo da sua vida, desde que é bebe, depois a sua infância, passando pela adolescência e terminando na vida adulta. No jogo vamos ver esse relacionamento a ser personificado nas 4 estações do ano e nas duas personagens centrais Alba e Neva.
O jogo começa com aquilo a que eu chamo um momento Bambi. A Disney é famosa por nos dar valentes socos no estômago, especialmente em desenhos animados um pouco mais antigos, como foi o caso do Bambi, onde Bambi a fugir ao lado da sua mãe, de repente se apercebe que ela não está mais ao seu lado e que nunca mais estará. Aqui é quase igual, a mãe da pequena loba Neva, a protectora de Alba, luta ao seu lado contra uma entidade sombria que ceifa toda a vida em que toca e que se está rapidamente a alastrar. Nessa luta por mais esforços que façam a mãe de Neva acaba por morrer e, sobrevivendo miraculosamente, Alba terá que tomar conta de Neva e ajudá-la a crescer, sem mãe, mas com uma mãe emprestada.
Como já tinha dito, são 4 estações, portanto são 4 capítulos, cada um com cerca de uma hora ou hora e pouco, onde vamos ver Neva a crescer à medida que Alba envelhece. O jogo aborda temas como maternidade/paternidade, amadurecimento, separações, saudade e luto, sem recorrer a diálogos ou cutscenes explicativas. A narrativa é contada através da arte visual, trilha sonora, sons ambientes, jogabilidade e animações. Poucos estúdios conseguem contar uma história de forma tão eficiente apenas com estas ferramentas, mas o Nomada Studio tornou-se mestre nessa técnica.
E a riqueza desta narrativa está nos pequenos detalhes que se tornam enormes devido à falta de qualquer outro auxiliar para a leitura da mesma, o tom de Alba a chamar por Neva em diversas fases do jogo, desde assustada quando foge a correr atrás de uma borboleta, passando pelo pedido de auxílio quando já é mais adulta, ou o reconforto de quando sobrevivem aos terríveis inimigos num abraço comovente, são apenas alguns dos exemplos. O facto de podermos chamar por Neva sempre que quisermos através de um botão dedicado, poderia funcionar apenas e só como mecânica, mas acaba por ser muito mais quando chamamos e ela não responde, ou quando não regressa, ou chama por nós. O jogo é tocante em vários momentos, e vai ser difícil alguém não chorar em muitos deles.
A banda sonora, outro dos enormes detalhes do jogo, foi novamente composta por o colectivo berlinist, músicos e produtor catalães que também já tinham feito a banda sonora de Gris. Neste caso temos o trabalho de Marco Albano e Luigi Gervasi na composição e arranjos e depois os músicos Adriana Lorenzo no violoncelo, Marc Vidal no piano e Víctor Rodríguez no violino, que recentemente fizeram uma apresentação dos temas que compõem a banda sonora do jogo, gravados ao vivo na Casa Capell, em Barcelona e que podemos ver em baixo.
À medida que vamos observando a Natureza a ser consumida por aquela força sombria que corrompe tudo o que toca, uma clara metáfora a como o consumo desenfreado e sem regras está a destruir o planeta, os puzzles de ambiente vão se adaptando a novas mecânicas qua vão sendo implementadas ao longo da nossa jornada, algumas delas devido ao crescimento de Neva e de novas capacidades que vemos surgir nela.
A jogabilidade de Neva combina elementos de ação e plataforma de forma relativamente simples, mas com maior complexidade em relação ao jogo anterior da desenvolvedora, Gris. Os puzzles são um ponto importante, aproveitando bem as mecânicas de plataforma e apresentando variações que vão de desafios simples a outros que exigem mais observação. Apesar disso, os quebra-cabeças mais difíceis são opcionais e apenas necessários para ativar flores escondidas no cenário. Assim, jogadores interessados apenas em apreciar a arte e a narrativa podem avançar sem se preocupar com esses desafios extras.
A progressão é linear e o jogo, embora curto, mantém as habilidades de Alba consistentes do início ao fim. Alba salta, esquiva-se a rolar, dá saltos duplos, consegue fazer um das aéreo e pode atacar com uma espada. À medida que as estações passam e a jornada atinge um território mais complicado em termos de inimigos e travessia, Neva amadurece num aliado mais poderoso. Visivelmente maior e mais assertivo, a loba torna-se mais como a protetora de Alba, espelhando a mudança de criança para adulto – assim como na vida, onde cuidamos dos pais que uma vez cuidaram de nós. Assim, Neva adquire novas habilidades ao longo dos capítulos, como ataques próprios, iluminação, uso como montaria agarrar os inimigos ou lançar-se em determinada direção por comando de Alba.
Os confrontos em Neva são diretos e baseados em ataques rápidos e esquivas precisas. Embora não possuam grande complexidade, oferecem momentos emocionantes, especialmente nas batalhas contra Bosses, que se destacam pelos visuais impressionantes e pelos padrões de ataque únicos. Neva desempenha um papel indispensável nessas lutas, ajudando a imobilizar inimigos e colaborando na solução de quebra-cabeças, o que reforça a conexão emocional entre as duas personagens.
A exploração também é um aspecto central do jogo. Os cenários, sempre belíssimos, estão repletos de obstáculos e plataformas que exigem interação e cooperação entre Alba e Neva. As seções de plataforma são bem equilibradas, evitando frustrações, mas poderiam apresentar maior nível de desafio para os jogadores mais experientes. Já os puzzles, muitas vezes integrados ao próprio ambiente, são bem elaborados, mas seguem a simplicidade que permeia grande parte da experiência de Neva, tornando-os acessíveis sem comprometer a fluidez da narrativa.
Em Neva, o par atravessa paisagens que evocam aquarelas serenas e vibrantes, com a câmera frequentemente diminuindo o zoom para capturar a vastidão e beleza do mundo, transformando a mulher e a loba em meras manchas em uma tela de cor e luz. Nomada Studio, em momentos específicos, congela essa imagem por um tempo considerável, como se convidasse o jogador a contemplar e se apaixonar pela beleza natural que permeia o cenário.
Conforme a narrativa avança, o tom do jogo torna-se progressivamente mais sombrio. Os campos bucólicos dão lugar a céus tingidos de vermelho-sangue e ruínas em colapso, simbolizando a decadência e o perigo iminente. O grito angustiado de Alba por “Neva!” torna-se cada vez mais penetrante e emocionalmente carregado sempre que os dois são temporariamente separados, intensificando a conexão entre os personagens e o peso emocional da jornada, peso esse que nos aperta o coração com cada vez mais força até ao seu final.
Os homens também choram, e aqueles que não choram, deviam fazê-lo, e Neva leva-nos às lágrimas, não só pela beleza e emoção que nos provoca, mas também por nos lembrar que tudo tem um fim, o nosso, por exemplo, os daqueles que nos são mais queridos, mas que ao mesmo tempo outras vidas começam e darão origem a novas vidas. Neva ficará para sempre na minha memória, um jogo obrigatório, um dos melhores indies do ano e um jogo de culto.