Developer: Scavengers Studio
Plataforma: PlayStation 5, PlaytStation 4 e PC
Data de Lançamento: 21 de janeiro de 2023
Nem sempre é fácil explicar como um jogo independente, que não tem um orçamento milionário ou gráficos que se misturam com a realidade, tem um impacto tão forte na experiência que temos ao jogá-lo. Este é um desses casos e acontece pela própria reflexão que nos incute e, especialmente, pela liberdade desse pensamento que é tão pessoal e único.
SEASON: A letter to the future não tenta recriar a realidade, vive na sua própria. Faz-me lembrar os mundos criados com uma personalidade tão forte e única, aquilo que os estúdios Ghibli do mestre Hayao Miyazaki foram fazendo/passaram a fazer desde 1985, por exemplo.
O mundo é apocalíptico, é certo, mas não foi infestado por uma doença que transforma humanos em zombies, ou em máquinas, ou em vampiros, ou outra coisa do género. Neste jogo, há uma doença que altera a perceção do tempo e que se agudiza com os ciclos, as apelidadas “estações”, que, afectam a memória daqueles que por lá vivem.
A história é complexa, misteriosa e vive das pessoas, isto é, da sua memória e das memórias que foram criadas por elas nos vários locais que vamos visitando. Foi para mim difícil não pensar naquele que é também um medo meu, um medo pessoal e até algo parvo para muitos: o de ter medo de ser esquecido. Aquele medo de, na nossa curta viagem por este mundo, não fazer a diferença, não trazer algo de bom para as pessoas que nos rodeiam, não as termos marcado e criado memórias que prevaleçam para lá daquilo que o nosso corpo nos deixar viver. Foi para mim, também, uma reflexão sobre a morte, o que deixamos quando perecermos, o legado que deixamos, aquilo que fazemos e fizemos durante a nossa vida e, por isso mesmo, se criamos registos suficientes, e autênticos, daquilo que vivemos. Pode parecer um pouco exagerado, ou alguns pensarão que um jogo não pode criar esse sentimento ou pensamento, mas foi o que me aconteceu.
No jogo encarnamos a personagem de uma rapariga chamada Estelle que resolve entrar numa jornada de capturar informações da actual Season que está a viver, ou seja, essa estação antes que ela acabe. Aqui cada facto no mundo é uma estação, como uma vida, uma guerra, um período de paz e por aí adiante.
Antes de partir nessa jornada, Estelle, com a sua mãe, cria um pendente, através de memórias sensoriais para que não se perca nas memórias dos outros, daqueles que com se depara e de umas misteriosas flores que recolhem tantas outras. Esse pendente é feito com memórias de objectos que escolhemos livremente no jogo, dentro dos possíveis, que invoquem uma memória visual, de olfacto, de paladar e de tacto. A criação deste pendente é a única condição da mãe de Estelle para a deixar percorrer o mundo.
E o “mundo” não é assim tão grande no jogo. Nas montanhas, há uma vila isolada chamada Caro onde Estelle e a sua mãe vivem, para além de outros moradores, e no vale ninguém sabe. A razão é simples: ninguém desce aos vales e ninguém sobe até às montanhas. Caro é um lugar de cura que resiste às mudanças, onde o Doutor Fucio encontra uma fórmula para tal, embora os seus moradores saibam que ela será inevitável quando a estação acabar e uma nova surgir.
Após a introdução, o jogo demonstra a sua estrutura de mundo aberto no Vale de Tieng, que será inundado pela destruição planeada de uma barragem. Estelle tem assim até à meia-noite para conhecer o que puder antes que tudo seja coberto pela água. Como o vale vai ser inundado, e toda, ou quase toda a população já foi evacuada, restam mais ou menos 5 pessoas para conhecermos durante o jogo.
O tema que percorre toda a aventura, como já perceberam, é o tempo. O tempo e os seus principais desdobramentos, é claro: o passado e o antigo, assim como o futuro e o novo. A ligação entre os dois “tempos” é a mudança e aquilo que acaba por unir a linha temporal, é a memória. Um quadro vasto que pode ser composto por lembranças, perdas, amores, afectos, mistérios, sentimentos e esquecimentos.
Na cronologia do jogo, após os desconhecidos tempos antigos, surgem quatro épocas – como as quatro estações. Primeiro, a longa Estação da Modernidade, sucedida pela Estação Dourada. Depois, veio a Guerra, cujo fim deu início à época atual, sem nome. É que uma estação só consegue ser definida quando se torna passado, sob o escrutínio daqueles que vivem na época seguinte. Até este facto é interessante, não existe uma ligação a uma realidade de um povo, de uma cultura ou de uma civilização, apenas componentes abstractas que, no fundo, facilmente se podem transpor para a realidade de qualquer pessoa que o jogue.
Se quiserem, somos um jornalista do tempo, mas não da meteorologia, bem entendido seja, um jornalista daquele tempo, daquela era. Do tempo, da estação, essa que só poderá ser identificada após terminar, mas para isso precisa que seja conhecida e identificada como tal.
Para o fazer, Estelle tem consigo um caderno e um gravador para recolher todas as provas e compor todas as histórias desta estação. Cada local e segmento da história tem as suas próprias páginas duplas no caderno, ordenado por um sumário. Sempre que Estelle interage com algum ponto de interesse, ela reflete sobre ele. Há até momentos de uma maior contemplação e reflexão que a leva a fazer um desenho.
Quando descobrimos um novo local um novo capítulo se abre no nosso caderno, para preenchermos com uma quantidade de informação, nos vários tipos de recolha. Podem ser fotografias, áudios gravados, papéis ou notas recolhidas, pensamentos escritos, carimbos ou selos.
E esse é o objetivo do jogo. Pegar na bicicleta, pedalar de um local ao outro, reportar tudo e criar o nosso próprio diário, o nosso próprio scrapbook.
O diário é personalizado, onde dada recordação obtida, seja ela uma foto, um objeto encontrado ou uma conclusão que a personagem obtém durante a exploração, torna-se uma espécie de “autocolante” para poderem colocar onde quiserem no caderno, diminuir ou aumentar o seu tamanho, rodar e escolher até artifícios como carimbos ou selos para embelezar as páginas.
Apesar dessa organização não ser obrigatória, SEASON: A letter to the future estimula o jogador a fazer essas montagens, bem como tirar fotos com vários tipos de filtro disponíveis e desbloquear mais opções para o diário.
O jogo pode demorar entre as 5 a 10 horas a ser concluído dependendo da exploração de cada jogador. O grafismo cel shading dá personalidade ao jogo, com cores vibrantes que apelam à contemplação da paisagem. As personagens, algumas delas bastante bizarras, também dão um cunho misterioso que acaba por alimentar a nossa curiosidade. A fluidez dos movimentos de Estelle, de andar de bicicleta, de usar a máquina fotográfica ou do gravador também estão geralmente bem conseguidos para gerar um certo flow no jogo.
Tenho que referir o excelente uso do DualSense na PS5, uma das razões pela qual a experiência se torna verdadeiramente única. Os gatilhos hápticos dão-nos a sensação de pedalar na bicicleta, prendendo, tal e qual como acontece na realidade, criando aquele atrito quando começamos a pedalar e depois soltando quando ganhamos velocidade. O feedback háptico dá conta das várias texturas por onde passamos com a bicicleta, mas também nos avisa com pequenas vibrações quando estamos perante algo que merece a nossa atenção.
Depois, há a particularidade da pequena coluna do DualSense dar conta das memórias que vamos recolhendo ao longo da nossa jornada. Sentimo-nos mesmo um repórter de campo, onde conforme apontamos o microfone do nosso gravador vamos ouvindo quer no comando quer nos phones o som que captamos, e isso é realmente diferenciador. A imersão do áudio 3D também se faz em relação a toda a envolvência, visto ser um jogo que apela aos sentidos, está super detalhado a origem de cada som e a sua reprodução no espaço.
No entanto, nem tudo são rosas. Há elementos que não foram tão polidos como deveriam. Um deles passa por algumas animações de Estelle, sobretudo a de pegar na bicicleta e pedalar, que é algo que vai acontecer várias vezes ao longo do jogo. Podia estar mais perfeitinha e fluída. O mesmo acontece com alguns diálogos em que as expressões faciais não se alteraram perante o contexto.
Depois há ainda um elemento algo estranho, o de ouvirmos tantas vezes a voz de Estelle, mas quando dialoga com alguma personagem só termos o texto escrito para escolher a sua fala e ela nunca a reproduz de viva voz. Por fim, tenho que referir os glitchs. Foram várias as vezes em que Estelle e a sua bicicleta ficaram a flutuar no mapa obrigando-me a desligar o jogo, ou voltar ao menu inicial para conseguir continuar a jogar.
SEASON: A letter to the future é uma excelente proposta para abrandarmos e desfrutarmos de um jogo que nos coloca em perspectiva o tempo e a nossa própria existência nesse plano. É a prova que se pode ser inventivo, inovador, levar o jogador a uma reflexão profunda, apresentando ainda elementos inovadores na jogabilidade, aqui em particular devido à integração dos elementos usados com o DualSense da PS5.