Developer: Whallestork Interactive
Plataforma: PC
Data de Lançamento: 5 de janeiro de 2024
Antes de começar a desbravar sobre este jogo, é preciso dar um certo contexto da minha ligação com o mesmo para que não haja qualquer interpretação subliminar. Eu acompanho de perto as capacidades criativas do André Broa há largos anos, tivemos um videocast juntos em colaboração com outro site de videojogos, o WASD, em que tínhamos as ideias mais estapafúrdias de aberturas de cada episódio e a interpretação mais série B possível da nossa parte. Sempre que eu achava que uma ideia podia ser minimamente boa, ele consegui-a traduzir em algo fantástico. Se quiserem saber do que estou a falar, basta verem alguns exemplos em baixo, de coisas que fizemos há cerca de 10 anos.
Na altura, ninguém ligava ao Youtube ainda, nem a videocasts… tivemos sempre a mania de sermos avant-garde e lixámo-nos sempre… mas hoje vivemos bem com isso. A persistência do André foi realocada para um sonho antigo de fazer um videojogo, do princípio ao fim, pela sua mão, isto é, com cada personagem, cada paisagem, cada elemento artístico, desenhado e pintado à mão. Foram precisos 7 anos e os companheiros certos para o fazer.
Agora, e já depois de ter ficado alegremente surpreendido pela beleza do jogo demonstrada na demo, é vez de analisar o jogo pelo seu todo.
Uma coisa que disse logo nessa antevisão que escrevi, é que sou um fã confesso do género Point and click, e foi talvez aí, que me iniciei na era moderna dos videojogos com o Broken Sword. Ainda hoje me lembro de como ficava atolado numa secção e demorava meses até conseguir encontrar uma resposta. Naquela altura não havia internet, nem todas as revistas traziam a solução para o jogo que queríamos, mas lá surgiu uma que me ajudou e consegui-o terminar. Essa situação marcou-me, nunca no mau sentido, apenas me desafiava a pensar nas inúmeras formas com que deveria superar aquele trecho do jogo. Hoje, talvez fizesse com que os mais novos pedissem o refund no Steam, criticassem o jogo e deitassem abaixo o trabalho de, por exemplo, 7 anos de árduo trabalho.
Por isso, quando recebi este jogo para análise, tive que terminar a anterior, neste caso a do The Last of Us Parte 2 Remastered, para dar a devida atenção e detalhe à análise que queria escrever. E ainda bem que o fiz, porque precisei de toda a minha atenção, inteligência, que pode ser sempre um assunto subjectivo, e perspicácia para dar a volta a este thriller cinematográfico.
E sim, é bastante difícil, nada é dado ou gratuito, vão ter mesmo que puxar pela cabeça e pensar como se estivessem dentro do jogo. Portanto, sim, para os “mais jovens” que adoram “zerar” jogos sem perceber sequer o que jogaram, tirem o cavalinho da chuva. Mas já lá iremos, ao detalhe, falar sobre a questão da dificuldade.
Primeiro, vamos dar conta do contexto do jogo. A personagem principal é Graham, que sai disparado de uma zona onde ficamos a saber que está uma matilha de lobos, e a nossa personagem não tem qualquer memória de como foi ali parar, e isso levanta logo uma suspeita, mas como ao início não passa disso, seguimos com a nossa personagem à procura de encontrar algum sentido.
É nessa procura de respostas que encontramos uma pequena cabana rústica, onde uma miúda empunha uma caçadeira, no meio do escuro e nos diz que somos um monstro e que nos mata se chegarmos mais perto. Como “quem tem cú, tem medo”, tentamos encontrar uma maneira de ligar as luzes de um gerador estragado para que ela veja, por si mesma, que não somos um monstro, apenas um homem barbudo e “caixa de óculos”. Mas será que somos só isso?! A dúvida fica lá atrás… na nossa nuca, mas não nos larga…
Depois de ganharmos a confiança da pequena miúda, pobre coitada, supostamente ali abandonada, vamos tentar encontrar a sua mãe e ir ao encontro dos seus avós que vivem bastante longe dali. E com o caminho tapado pelos lobos, vamos tentar encontrar um outro caminho que nos permita lá chegar. É esse o início da aventura.
E há, desde o início, um sentimento de que nada é o que parece, que a razão pela qual vimos aqueles lobos não é normal, não encontrarmos mais ninguém pelo caminho também não e até Graham não será quem julgamos que ele seja. Todo esse mistério, esse jogo psicológico, alimentado pelas frases que iniciam cada capítulo, fazem-nos querer saber mais, chegar ao fundo da questão ou até viver horrorizados com a triste verdade…
O que sabemos é que o jogo se movimenta lentamente com os passos de Graham na esquerda para a direita, por vezes com alguns caminhos a serem percorridos pelo meio do ecrã, mas todo o movimento da câmara andará nesta espécie de círculo da fita magnética de um filme, com a profundidade e o afastamento do backdrop a acontecer da mesma forma, fazendo-nos sentir que estamos sempre dentro do mesmo mapa com as referências, como a casa onde encontrámos a Hannah e o Farol como pontos centrais.
No entanto, isso não quer dizer que todos os cenários são exteriores. Vamos entrar dentro de uma casa, de armazéns, percorrer os túneis labirínticos de uma mina ou do parque natural, tudo com uma boa variação de espaços, propostas, diferentes planos e objectos pormenorizados. Aliás, sobre isso, queria dizer algo que pode parecer superficial – mas para o tradicional jogador de point and click, nem por isso: geralmente, os objectos que podemos recolher ou movimentar parecem sempre ter um “aura” diferente, o que nos faz desviar o olhar para lá de alguma maneira. Estão completamente harmonizados com todo o trabalho manual do jogo dando-nos, por um lado, a noção que todos os objectos podem ter uma finalidade, basta que usemos a nossa imaginação, ou, por outro lado, nos levam a verificar cada cenário ao detalhe à procura daquela interacção “marota”.
Em termos de mecânicas de jogabilidade, The Night is Grey foca-se sobretudo nos puzzles, sejam de ambiente, sejam no sentido mais clássico de um quebra-cabeças.
Nos puzzles de ambiente, geralmente temos que descobrir como aceder à próxima zona usando o que está à nossa volta, usando o botão direito para Graham fazer uma breve descrição ou ter algum pensamento sobre o objecto que nos ajude a decifrar o seu uso. Alguns destes puzzles de ambiente são extremamente inteligentes, e neles, vão estar na pele de Graham e pensar como se estivessem na situação. Talvez o caso mais evidente será o “malvado” fio descarnado, sem tentar spoilar nada.
Do outro lado, temos os quebra cabeças puros e duros. Podem ter que fazer umas quantas contas de cabeça para acertar na amperagem de um quadro de electricidade, descobrir um código colorido, desviar a corrente para os eléctrodos certos ou colocar válvulas num sistema de canos complexo. Sendo que, para mim, ainda existem alguns exemplos destes dois universos a convergir, como o maquiavélico puzzle dos caminhos da mina, que vos vai fazer suar do bigode e coçar muito a cabeça.
The Night Is Grey sempre quis ser uma homenagem ao género point and click, ao malfadado género que foi ficando órfão com o passar do tempo, com a velocidade que consumimos conteúdos, jogos, filmes, séries, e que queremos tudo para ontem.
É um jogo onde se nota o gosto dos seus criadores pelos jogos de tabuleiro, pelas narrativas densas e enigmáticas, sombrias e desconexas, mas que ao mesmo tempo são capazes de falar de saúde mental, parentalidade ou de sobrevivência. Um jogo deste tipo vive muito da experiência da jornada, mas fundamentalmente pela mensagem que encontramos aquando o seu final… e dizer final é redundante neste caso.
O estúdio Whalestork Interactive conseguiu embrulhar o meu cérebro de certezas e dúvidas. De facto, a única certeza que se manteve ao longo do jogo é mesmo que algo não batia certo, mas nunca imaginei que seria a tal ponto. É genial! É genial como conseguiram por-me a pensar sobre questões de saúde mental, de bipolariedade, de maus tratos, de violência doméstica, de abuso de poder e até do futuro. Estou a fazer um esforço muito grande para não spoilar nada, e mesmo assim coloquei esta porção do texto com um alerta disso mesmo, porque poderá “viciar” a visão do jogo antes de o experimentarem. Coisas como a profissão de faroleiro se tornar obsoleta devido à tecnologia, mas de como necessita do ser humano para corrigir o erro, ou encontrar uma solução, é claramente uma alusão à questão da Inteligência Artificial e da evolução tecnológica. Mas não fica por aí. Há também uma crítica social ao regime laboral e de como os trabalhadores são explorados pelos “ricos”, a relação familiar e de abusos constantes e as marcas psicológicas que deixam, há voyeurismo e obsessão, psicose e neurose. São muitas as mensagens e, por isso mesmo, permite uma interpretação muito ampla daquilo que é o suposto final.
Para mim, quando um jogo me deixa a pensar horas e horas sobre o seu significado, quando o quero repetir para tentar ver as coisas com outros olhos e obsessivamente ter respostas, é um jogo que eu sei que me vai ficar na memória por muito tempo. Para mim, é e será um jogo de culto.
Neste disclaimer que fui fazendo ao longo do texto, falta ainda referir a banda sonora que acompanha o jogo. Mais uma vez, sou suspeito, e assumo o “conflito de interesses”. A banda sonora foi feita pelo irmão do André Broa, o Bruno, que é meu amigo há quase duas décadas. O Bruno sempre teve várias bandas e movimentos que apoiei nas rádios onde trabalhei e, por isso, sei perfeitamente a capacidade que tem para pintar imagens em notas musicais. E neste caso, o Bruno não só arregaçou as mangas, evitando loops e artifícios que o ajudaram a esticar as suas composições, como criou verdadeiras canções instrumentais que viajam com o jogador.
Para criar esta banda sonora, o Bruno abraçou as suas memórias de antigos projectos, nomeadamente de Alma Fábrica ou Oficina Salobra, um conjunto musical operário que parecia retratar tanto a história, como as estórias das gentes mais comuns, ou “Nicht Vergessen Bruder” (Não Esqueças Irmão), o registo que compôs para marcar o centenário do início grande Guerra (1914-2014).
No jogo, a guerra é obviamente outra, mas uma que o Bruno também domina: a da mente, do suspense e da transformação, aliada à esperança nos pequenos gestos e num coração puro.
The Night Is Grey é uma obra-prima da Whalestork Interactive e logo à primeira tentativa. É uma verdadeira homenagem ao género point and click, tem um guião digno de uma série ou de um filme nomeado para um Emmy e tem aquele “feeling” de jogo de culto. A arte do jogo é lindíssima, a banda sonora está ao mesmo nível e cria verdadeiros momentos de deleite artístico. Foram 7 longos anos de trabalho, mas o resultado prova que a exigência, a responsabilidade, a perseverança e a atenção ao detalhe fazem a diferença, e tornam um jogo muito bom, num jogo inesquecível e de culto.