Salão de Jogos (SDJ): Olhando para o trabalho já realizado, sente que os videojogos já são vistos como uma importante ferramenta para a saúde física e mental e, até mesmo, como uma plataforma de aproximação cultural? Indo assim contra os estereótipos que ainda vemos a serem lançados para a indústria de que só fomentam a violência ou comportamentos violentos?

Zach Wigal (ZW): Os nossos programas apoiam crianças e famílias que não conseguem interagir em actividades físicas. Algumas dessas crianças estão “enfiadas” num hospital por um período muito longo de tempo. Para eles, os videojogos são um escape e uma forma facilitada para brincar e de interacção social. Nessa perspectiva, é indiscutível o imenso benefício que os videojogos têm nestas crianças.

Nós ajudámos uma criança que esteve hospitalizada quase um ano. Se não fosse o Minecraft, ele não teria tido outra forma de estar em contacto com os seus amigos fora do ambiente do hospital. Os videojogos deram-lhe isso, e o Minecraft tornou-se uma espécie de recreio virtual para eles.

Desde o primeiro momento em que se encontrou uma forma de dar movimento a imagens dentro de um ecrã, que se criou um enorme potencial para jogar, interagir e educar. A internet deu-nos a possibilidade de nos conectarmos e de ampliar esse conceito de uma forma significativa. Por isso, eu acho que os videojogos sempre foram uma ferramenta importante. Agora temos consciência desse potencial enquanto developers e os fãs têm-nos apoiado o meio.

SDJ: Em termos de organização e estrutura para levar a cabo esta iniciativa, muito mudou, chegando a cada vez mais hospitais e a cobrir cada vez mais território. Ainda se lembra de como começou esta aventura?

Publicidade - Continue a ler a seguir

ZW: A Gamers Outreach começou quando eu ainda andava no liceu, há cerca de 15 anos. Desde então, desenvolvi interesse em organizar torneios de videojogos e outro tipo de eventos para os meus colegas. Pedia material emprestado, imprimia uns panfletos, e mandava mensagens para jogadores locais através das redes sociais para criar algum “buzz”. E gradualmente, os meus torneios começaram a atrair centenas de participantes.

Um desses meus eventos foi cancelado por um polícia que acreditava que os videojogos, nas suas palavras, “corrompiam as mentes dos jovens americanos.” A opinião desse agente de autoridade era que os miúdos “estavam a treinar-se para matar” ao jogar videojogos e, que o meu evento era um perigo para a segurança pública devido ao seu conteúdo.

Como jogador, senti-me frustrado com o que o tal polícia sentia. Sempre vi os jogos como uma forma de manter o contacto com os meus amigos, de apreciar uma história, ou até, de me exprimir de forma criativa. Acredito que os jogos podem ter um enorme impacto se escolhermos aplicar o nosso conhecimento de uma forma positiva.

Quis provar esta minha forma de ver as coisas e por isso, organizei um torneio de solidariedade. No processo de avaliação de causas que poderia ajudar, descobri um hospital local que estava com dificuldade em criar actividades para as crianças hospitalizadas. O staff médico tinha o desejo de dar algumas actividades de gaming aos seus pacientes, mas não tinham as ferramentas necessárias para gerir os equipamentos. E foi assim que surgiu a ideia dos GO Karts, e basicamente foi isso que deu origem à Gamers Outreach.

Depois… e até aos dias de hoje, aprendi que este mesmo desafio existe em quase todos os hospitais. Percebi que somos nós – a comunidade gaming – que temos de instigar a mudança nas famílias hospitalizadas. Somos os únicos a ter o conhecimento para ajudar o staff hospitalar a instalar e a gerir conteúdos gaming. Literalmente – é preciso ser um gamer para saber como dar experiências à escala às crianças. Eu e a minha equipa levamosisso a sério. Queremos criar um mundo onde todas as crianças hospitalizadas tenham a oportunidade de jogar. Acreditamos que os videojogos são a ferramenta que nos pode levar a esse resultado. Agora, os nossos programas existem ao longo de centenas de hospitais. Estimamos que os nossos dispositivos geram cerca de 3 milhões de experiências gaming por ano e grande parte dessa concretização deve-se ao apoio da comunidade gaming e de parceiros como a Xbox.

SDJ: Como foi lidar com a questão da pandemia do COVID-19? Em que termos afectou a iniciativa e até que ponto ainda foi mais notória a sua importância perante a fragilidade e o isolamento das crianças nos hospitais?

ZW: Primeiro, acho que é importante notar que existimos para restabelecer uma espécie de normalidade às crianças e famílias hospitalizadas. Queremos facilitar e simplificar forma do staff médico dar a oportunidade de jogar mas também de cuidar. No fundo, que as nossas iniciativas – GO Karts, Player 2, Save Point e Portal – possam cumprir esse objectivo de várias formas.

Felizmente, os hospitais pediátricos não tiveram muitas crianças hospitalizadas devido ao vírus COVID. No entanto, as medidas de distanciamento físico, que ainda hoje permanecem e são vísiveis por toda a parte ainda persistem. A maioria dos hospitais com os quais falámos, isolaram os seus pacientes nos quartos. Isso quer dizer que também as visitas e a presença de voluntários foram limitadas.

Com essas limitações e com as restrições de actividades para os pacientes, o nosso obejctivo do trabalho foi ainda mais importante. O staff médico procurava formas de ajudar as crianças a manterem-se activas, e o gaming teve um enorme papel nesse sentido.

Os nossos GO Karts foram mais requisitados do nunca. Recebemos mais pedidos por parte dos hospitais do que qualquer outro período da nossa história. A nossa capacidade para dar suporte a essas insituições foi conseguida apenas com a ajuda de apoios.

A nossa equipa já se tinha organizado num esquema “remote-first” por isso, felizmente, conseguimos manter as nossas operações sem uma grande diferença no nosso workflow.

SDJ: Tem sentido também por parte da indústria dos videojogos uma maior atenção para os mais desfavorecidos, até em termos de acessibilidade, com comandos e opções nas consolas e videojogos para uma maior integração de todos, dando uma oportunidade para todos serem vistos como iguais?

ZW: Existe uma maior consciência em relação a funções acessíveis para todos os videojogos hoje em dia. Basta olhar para o Xbox Adaptive Controller – um dispositivo que foi criado de propósito para dar uma maior acessibilidade e, promovido através de canais de mainstream. A comunidade gaming também que ser destacada, com grupos como a SpecialEffects e a AbleGamers, que têm sido pioneiros neste campo há um bom par de anos.

SDJ: Hoje em dia há mais formas de dar condições de acessibilidade a todo o tipo de jogadores, seja através de hardware, software ou comandos. São passos necessários na indústria para incluir o maior número de jogadores e tratá-los todos por igual?

ZW: De um ponto de vista de jogador: quanto mais opções existirem em termos de acessibilidade e de pontos de distribuição ou formas de jogar, mais oportunidades vão existir para termos conteúdos de forma única. O nosso trabalho na Gamers Outreach é especialmente focado em dar apoio aos hospitais. Queremos ajudá-los de uma forma mais ampla, a terem as ferramentas necessárias para os videojogos existirem nesses ambientes e dar a hipótese aos pacientes de se conectarem com o mundo como se estivessem em casa.

SDJ: Temos visto também alguns exemplos de como estas crianças deixam de estar sós e até de se lembrarem dos seus problemas ou até banalizarem-nos jogando e conversando com pessoas online, nos chats. Estando tão perto, acreditamos que tem passado por momentos emotivos… qual foi a maior lição de toda esta experiência?

ZW:A Gamers Outreach moldou a minha maneira de ver o mundo – especialmente a forma como nos relacionamos com as outras pessoas. É fácil passar despercebido, mas há algo que me apercebi ao longo deste tempo: no fim do dia, todos nós estamos conectados com as outras pessoas através de actividades e interesses. As crianças que ajudamos querem jogar, poder disfrutar da vida, tal como outra pessoa qualquer. Os jogos ajudam a quebrar barreiras e a enriquecer a sua vida.

Uma outra epifania que tive durante este tempo todo em que trabalho na Gamers Outreach foi que os videojogos permitem play-at-scale. Através dos jogos, podemos transmitir lições de vida e valores que seriam inacessíveis a crianças hospitalizadas. Se uma criança fica triste ou zangada por perder uma partida no seu videojogo favorito, isso torna-se um momento em que o seu cuidador pode interagir com ela no sentido de lhe ensinar o que é a perseverança ou o desportivismo. Esses são os valores tradicionais que são geralmente passados através dos desportos “físicos”. Mas numa situação em que uma criança não tem acesso a actividades físicas, os jogos podem preencher esse vazio como ferramenta educacional.

SDJ: Existe sempre mais passos que podem ser dados, quais são os seus, os da Gamers Outreach e o que espera ainda alcançar?

ZW: Criar um mundo onde um dia vamos olhar para traz e perguntar “lembram-se de quando os hospitais não tinham videojogos?”

SDJ: Em termos da indústria dos videojogos, o que acha que ainda pode ser feito para dar a mesma oportunidade a todas as pessoas, para incluí-las?

ZW: O gaming é uma ponte entre culturas. Eu penso nos videojogos como sinto em relação à música: são um meio criativo que pode ser partilhado sem qualquer tipo de barreira em termos de localização física ou de linguagem. Tenho amigos à volta do mundo, graças a essa partilha e amor por videojogos. Por isso, acho que, culturalmente, os videojogos ajudam a criar essa experiências partilhada de uma forma que, só agora, começamos a perceber a sua dimensão.

Em termos práticos, há ainda muita coisa a fazer para que os videojogos estejam em todos os hospitais de uma forma global. Há a componente de infraestrutura, de distribuição, de conteúdo e gestão. Todas estas peças precisam de estar presentes e de funcionar em harmonia para concretizar essa visão. Penso que o nosso trabalho terá um papel nesse campo e, espero que continuemos a ser um exemplo para outros, para que possam também eles construir algo nesse sentido e partilhar essa visão.

Artigo anteriorO novo PlayStation Plus chega a 22 de junho
Próximo artigoTwo Point Campus mostra novo trailer com curso de Feitiçaria
Pedro Moreira Dias
Fundador do Site - Salão de Jogos, o Commodore Amiga 500 foi o seu melhor amigo durante décadas e ainda hoje sabe de cor a equipa principal do Benfica do Sensible Soccer 94/95. Nos tempos vagos ainda edita as botas dos jogadores do FIFA e do PES.